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ENTREVISTA ESPECIAL

- Publicada em 26 de Março de 2012 às 00:00

População deve ajudar a decidir o que preservar, diz Ana Meira


JOÃO MATTOS/JC
Jornal do Comércio
O Orçamento Participativo tornou Porto Alegre referência internacional em cidadania - o modelo foi copiado em diversas partes do mundo. Mas a Capital gaúcha também é palco de outra experiência precursora em participação e democracia. Trata-se da iniciativa de associações de moradores de interferir no planejamento urbano e lutar pela preservação de edificações que são referências para a comunidade.
O Orçamento Participativo tornou Porto Alegre referência internacional em cidadania - o modelo foi copiado em diversas partes do mundo. Mas a Capital gaúcha também é palco de outra experiência precursora em participação e democracia. Trata-se da iniciativa de associações de moradores de interferir no planejamento urbano e lutar pela preservação de edificações que são referências para a comunidade.
A mobilização sistemática e organizada começou há dez anos, pelo Moinhos de Vento, onde, em 2002, houve um levante contra a substituição do casario característico local por prédios altos. A ação ocorreu também em mais de duas dezenas de bairros, que formaram, por exemplo, o Petrópolis Vive, o Menino Deus Vive, até se unirem no Porto Alegre Vive. Os chamados movimentos de bairro surgiram em oposição à descaracterização de áreas consolidadas da cidade.
Superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) no Rio Grande do Sul, a arquiteta Ana Lúcia Meira analisa esse fenômeno nesta entrevista ao Jornal do Comércio. Ela observa que há manifestações pontuais nesse sentido desde os anos 1920, algo que pode ser considerado pioneiro no Brasil. Além de recuperar parte do histórico dessas iniciativas, Ana Meira destaca o caráter pioneiro da Capital na contribuição de moradores para a preservação da memória.
Autora do livro O Passado no Futuro da Cidade: políticas públicas e participação popular na preservação do patrimônio cultural (Editora da Ufrgs), a superintendente estadual do Iphan entende que o cidadão tem o direito de dizer o que considera importante e que deve ser mantido. “Sempre defendi que a população também pode escolher o que será ou não preservado, porque existe outro olhar além do técnico.”
Jornal do Comércio - Os movimentos de bairro de Porto Alegre surgiram há 10 anos, questionando a descaracterização de áreas da cidade. É uma inovação essa movimentação de moradores?
Ana Lúcia Meira - Falo com os meus colegas nos outros estados do Brasil e eles dizem que não há um movimento tão organizado. Eventualmente surgem alguns, mas não como aqui nos bairros, em que eles fazem passeatas, debates, demarcam as áreas especiais de interesse cultural... A ameaça da perda sempre faz as pessoas se unirem. Esse movimento do Moinhos Vive, que começou em relação às casas da rua Luciana de Abreu, é muito interessante pela clareza. Eles trabalham pela qualificação dos seus bairros. E os movimentos se proliferaram, existem aproximadamente 25 grupos. Tem o Petrópolis Vive, o Viva Gasômetro, até uma Associação em Defesa da Ponte da Azenha. E eles se ajudam. Quando teve um abaixo-assinado para evitar a aprovação dos vereadores sobre a área do Pontal do Estaleiro, todos estavam se apoiando, participando.
JC - E essa inclusão de moradores no planejamento urbano? Há alguma relação com o Orçamento Participativo?
Ana Meira - Acredito que tem a ver com a cultura do Estado, que é participativa. E tenho impressão de que essa proximidade com Uruguai, Argentina e Paraguai, nossa opção por sermos brasileiros e a questão de perceber as diferenças é que tornam a identidade mais firme. Não acho que o Orçamento Participativo tenha desencadeado esses movimentos de bairro, isso já é uma coisa anterior. Mas não conheço no Brasil um conjunto de movimentos que tenham uma identidade entre si, embora os bairros sejam completamente diferentes, socialmente e economicamente. No entanto, eles sabem o que querem: a preservação da sua qualidade de vida e do patrimônio, que está inserido nessa perspectiva.
JC - Essa discussão do planejamento urbano e da preservação do patrimônio histórico normalmente fica restrita a técnicos - arquitetos, urbanistas, engenheiros. Até que ponto é importante a visão dos moradores para definir o que deve ser preservado?
Ana Meira - É válida a participação do público, porque o patrimônio é permanentemente produzido pela sociedade. Algumas coisas viram patrimônio, outras não, porque a sociedade agrega valor a algumas delas, considera que são especiais, e essa atribuição de valores muda conforme o tempo.
JC - Que contribuições do público podem ser citadas?
Ana Meira - Um bem que os técnicos jamais valorizariam é a caixa d’água da Ilha da Pintada, em Porto Alegre. Para a população de lá, é o maior patrimônio que eles têm. Não significa que não possa ser patrimônio, só porque os arquitetos não acham bonito. A partir dos anos 1980, houve uma ampliação de conceitos no campo do patrimônio e em função disso uma diversidade de pessoas passou a contribuir e atribuir valores aos bens para se constituir patrimônio. Nem todos que a população considera importante são compreendidos pelos intelectuais. Nos anos 1930 e 1940, considerava-se somente o valor arquitetônico e histórico, eventualmente arqueológico. A partir dos anos 1970 e 1980 já aparece o valor afetivo e de referência, ligado ao cotidiano das pessoas. Sempre defendi que a população também pode escolher o que será ou não preservado, porque existe outro olhar além do técnico. Mas a prerrogativa técnica nas instituições de preservação do patrimônio ainda influencia muito mais.
JC - E as manifestações da população ao longo dos anos?
Ana Meira - O Rio Grande do Sul tem uma trajetória particular. Desde os anos 1920 as pessoas são preocupadas com o tema e houve iniciativas surpreendentes no Estado. Em 1925, o governo estadual falava em preservar lugares históricos, já fazia referência a São Miguel das Missões. Naquela época, o Executivo fez um cercamento das ruínas dos Sete Povos das Missões para preservá-las. E se não tivesse feito, talvez não teria restado nada... Mas é muito precoce isso em termos de Brasil, é um dos estados precursores. Nos anos 1930 outros estados tiveram ações: Pernambuco, Minas Gerais, Bahia, mas foram as elites que trabalharam.
JC - E aqui?
Ana Meira - A elite intelectual ajudou, pessoas importantes, formadores de opinião como o Alberto André, que sempre foi um jornalista comprometido com a defesa do patrimônio histórico. Mas, além da elite intelectual, a população também contribuiu.
JC - Como?
Ana Meira - Podemos ver manifestações em Bagé, abaixo-assinados nos anos 1950, para preservar os remanescentes do Forte de Santa Tecla. E enviaram uma reclamação para a sede do Iphan no Rio de Janeiro - na época responsável por todo o Brasil -, sobre o atraso na resposta sobre o forte. O Iphan é de 1937 assim como a lei de tombamento nacional - é a lei republicana mais antiga em vigor. Agora, imagina a tarefa que era se dirigir ao Iphan no Rio - primeiro tinha que saber da existência, descobrir o endereço -, nos anos 1940 e 1950.
JC - Teve outros casos?
Ana Meira - Em Santana do Livramento, a população se manifestou a favor do tombamento das casas de Davi Canabarro, já que ele morou lá após a Guerra dos Farrapos. Em Pelotas, a Câmara de Vereadores pediu ao Iphan o tombamento do Monumento Republicano, que foi o primeiro do Brasil, erguido ainda no período monárquico. Em Rio Pardo, nos anos 1950, quase houve uma guerra civil por causa da preservação da Rua da Ladeira - o prefeito resolveu asfaltá-la e um historiador local começou a contestar essa ideia porque teria sido a primeira rua calçada no Rio Grande do Sul, para receber D. Pedro. O acirramento entre moradores que queriam o asfaltamento e os que queriam preservar a rua foi enorme. A Brigada Militar teve que enviar tropas para vigiar a população. No final, o prefeito asfaltou metade da rua e tombou a outra metade, que permaneceu intacta.
JC - Porto Alegre teve o caso do Mercado Público...
Ana Meira - Aí já é anos 1970. Teve também a Usina do Gasômetro, foi dado um abraço na Usina que a salvou da demolição - e principalmente por sindicalistas, o pessoal da CEEE. O traçado da avenida João Goulart passaria por cima da construção, por isso a manifestação deles. A antiga cadeia, que ficava exatamente ao lado da Usina, foi demolida por isso. No Mercado Público, o plano era fazer a mesma coisa (destruir o prédio para fazer uma avenida). Então, no Rio Grande do Sul houve um movimento precursor, tanto por parte da população quanto dos governantes.
JC - E o caso de Porto Alegre, com o crescimento da cidade?
Ana Meira - A Lei Orgânica de 1971 já tem preocupação com a preservação do patrimônio da cidade. É algo muito precursor. Instituíram um grupo de pessoas para estabelecer uma listagem de mais de 40 bens importantes para a identidade da Capital na época. Também se preocuparam com coisas que não eram monumentais.
JC - O que, por exemplo?
Ana Meira - Conjuntos de casa, a capela de Belém Novo e a praça do casario, que eram lindos, hoje em dia não sobrou nada. Também cemitérios, a casa do Pedro Weingärtner, o chalé do Júlio de Castilhos que despareceu totalmente, algumas edificações no Moinhos de Vento, a Travessa dos Venezianos... Essa listagem de 1971 foi muito criticada por ter sido feita somente por funcionários municipais. Em 1973 houve uma revisão, por outra comissão, abriram para a sociedade participar junto com várias entidades. E mais adiante, o Plano Diretor de 1979 já previa a preocupação com o tema. Porto Alegre tinha a lei de tombamento e o Plano Diretor, nenhum outro município no Brasil - a não ser Florianópolis, talvez - teve isso. São Paulo só conseguiu nos anos 1980, Curitiba teve uma lei de tombamento recentíssima...
JC - O Plano Diretor atual, que entrou em vigor em 2000, prevê as áreas especiais de interesse cultural, ou seja, preserva o entorno desses bens ou uma parte qualificada da paisagem urbana. Isso também é uma novidade?
Ana Meira - Já não é novidade porque nas listagens de 1971 e 1973 já havia preocupação com a preservação de elementos que não eram excepcionais, mas que eram representativos dos bairros. A Travessa dos Venezianos é um exemplo, ali eles seguraram mais outras casas. Desde a raiz e o nascimento dessa preocupação Porto Alegre já tem esse sentido de preservar também o não monumental.
JC - Porto Alegre tem o que comemorar nessa semana de aniversário em relação ao seu patrimônio histórico?
Ana Meira - Temos que comemorar um trabalho primoroso que foi feito nas áreas especiais de interesse cultural, que é um avanço e está servindo de exemplo. Também a mobilização da sociedade civil, que é uma coisa extraordinária. E a grande valorização do Centro Histórico, que há poucos anos estava abandonado. Também o conjunto de obras feito por município, Estado e União, o Programa Monumenta, desde o Palácio Piratini até o Cais, passando pela Praça da Alfândega. Outra coisa bem importante é a valorização do patrimônio imaterial do Centro - o patrimônio dos negros que está sendo revalorizado. Mas a cidade também tem a lamentar...
JC - O quê?
Ana Meira - Embora a gente não possa preservar tudo, porque senão engessa a cidade e tem que haver um meio-termo, dói ver aquilo que é desvalorizado ser demolido. Existem áreas escondidas que ainda têm de ser devolvidas à população. Essa falta de reconhecimento por parte dos governantes sobre a importância de determinadas ações, por exemplo, de implementar as áreas de interesse cultural... Enquanto isso não for feito, a demolição vai continuar sendo maciça. E também devemos lamentar a falta de valorização da orla do Guaíba.
JC - Outra questão da cidade é o tombamento de casas particulares, que às vezes gera polêmica, se diz que o imóvel fica imobilizado... Como avalia isso?
Ana Meira - A lei não diz que não se pode mudar ou mexer no imóvel. Mas sim que não se pode destruir ou descaracterizar. A Faculdade de Direito da Ufrgs, por exemplo, tem elevador panorâmico e outras intervenções contemporâneas, mas com critério. A lei diz que se deve aprovar o projeto nos órgãos de patrimônio, porque se fazem barbaridades por desconhecimento ou intencionalmente. E quando o proprietário não possui recursos, o governo federal pode se incumbir da restauração.

Perfil

Ana Lúcia Goelzer Meira nasceu em Porto Alegre e é formada em Arquitetura pela Ufrgs (1980). Tem especialização em Conservação e Restauração de Conjuntos e Monumentos Históricos (UFBA, 1982), Arquitetura Habitacional (Ufrgs, 1984) e Desenho Urbano (Ufrgs, 1985). Na década de 1990, fez cursos de aperfeiçoamento em Restauração, na Itália, pelo International Centre for Study of Preservation and Restauration, e em Ciências Ambientais pela Flacam, da Argentina, e pós-graduação em Política e Administração Cultural. Tem mestrado e doutorado pela Ufrgs em Planejamento Urbano e Regional. Além da vida acadêmica, trabalhou na consolidação das ruínas de São Miguel das Missões no início dos anos 1980 e no setor de patrimônio cultural da prefeitura de Caxias do Sul. Foi convidada a ingressar no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) no Rio Grande do Sul em 1983. Integrante do núcleo inicial, segue até hoje no órgão, do qual é superintendente estadual. Cedida à prefeitura de Porto Alegre de 1993 a 1999, assumiu a Coordenação da Memória Cultural. É autora do livro O Passado no Futuro da Cidade: políticas públicas e participação popular na preservação do patrimônio cultural.
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