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Entrevista Especial

- Publicada em 07 de Março de 2011 às 00:00

OP estadual deve ser baseado em regiões, sugere Allegretti


FREDY VIEIRA/JC
Jornal do Comércio
O especialista em Orçamento Participativo (OP) Giovanni Allegretti esteve no Rio Grande do Sul para palestrar em seminário promovido pelo governo do Estado em fevereiro. O urbanista italiano observou de perto a implantação do OP na gestão de Olívio Dutra (PT, 1999-2002) e avalia que o governador petista Tarso Genro não pode adotar o mesmo modelo implantado por seu correligionário.
O especialista em Orçamento Participativo (OP) Giovanni Allegretti esteve no Rio Grande do Sul para palestrar em seminário promovido pelo governo do Estado em fevereiro. O urbanista italiano observou de perto a implantação do OP na gestão de Olívio Dutra (PT, 1999-2002) e avalia que o governador petista Tarso Genro não pode adotar o mesmo modelo implantado por seu correligionário.
Para o pesquisador, foi um equívoco ter estruturado o OP estadual a partir dos municípios. Ele considera que o Palácio Piratini deve organizar o sistema a partir de macrorregiões. "Organizar um OP com base no município é errado. É preciso um critério territorial que dê a impressão de que o Estado possui uma linha política que norteia a distribuição dos recursos", aconselha. Na sua compreensão, subordinar o OP aos municípios acirra disputas político-partidárias entre as cidades e o Estado.
Allegretti acompanhou a instalação do OP em Porto Alegre, também durante a administração de Olívio no paço municipal (1989-1992), e aponta contradições entre o sistema original e o vigente hoje. Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, ele explica como se deu a consolidação de grupos hegemônicos dentro das assembleias do Orçamento Participativo e critica a falta de coesão política da prefeitura da Capital em torno do processo. "Com o tempo, começam a se constituir feudos. São grupos que conhecem bem o mecanismo e utilizam o OP para obter vantagens em interesse próprio", observa.
Jornal do Comércio - Que desafios o senhor projeta para a instalação do Orçamento Participativo (OP) no Estado?
Giovanni Allegretti - Uma participação decisória em grande escala tem um limite que precisa ser levado em conta. As pessoas não reconhecem no Estado o papel que reconhecem no município. Não sentem o Estado como um amigo próximo a elas. E as cidades são instâncias representativas abaixo do Estado. Suas lideranças foram eleitas e, portanto, possuem direito à palavra. Isso gera um choque constante e pode acontecer em um Estado como o Rio Grande do Sul.
JC - Em sua tese de doutorado, o senhor acompanhou o OP implantado no governo Olívio Dutra (PT, 1999-2002). Qual sua percepção do sistema àquela época?
Allegretti - Fui em muitas reuniões, inclusive em áreas rurais. Percebi uma tensão muito grande entre o Estado e os municípios. Era como se o Estado estivesse impondo a sua maneira, ciente da vantagem de sua influência econômica diante das prefeituras pobres. Era como se o Estado impusesse: "Esse é o método de distribuição de dinheiro e não há outro".
JC - O que o atual governo precisa fazer para que isso não se repita?
Allegretti - Organizar um OP com base no município é errado. O Estado deveria estruturar o sistema com bases regionais. Aqui existem os Coredes (Conselhos Regionais de Desenvolvimento), que poderiam ser uma boa base territorial para o OP. É preciso um critério territorial que dê a impressão de que o Estado possui uma linha política que norteia a distribuição dos recursos aos projetos. É preciso também que o Estado crie um sistema de participação que seja percebido pela sociedade. Porque modelos participativos em nível estadual sempre correm o risco de serem percebidos mais como políticas de concertação. Ou seja, como mecanismos para a harmonização de uma discussão política, mas com pouca participação.
JC - Como o senhor avalia a experiência do OP em Porto Alegre?
Allegretti - As experiências de participação são como as estrelas. Às vezes, morrem, mas continuam luminosas. Não é esse o caso de Porto Alegre, cuja história é importante, na medida em que se consegue construir uma memória do modelo de participação, dos erros, dos avanços e das percepções por parte da população. Além das mudanças que produz na leitura da cidade, criando nos cidadãos uma sensação de pertencimento. Mas se não for bem documentada, a memória pode criar mitos, que podem ter um efeito negativo.
JC - E isso ocorreu com Porto Alegre?
Allegretti - A experiência de Porto Alegre sofre pelo fato de ter sido mitificada. Muitas das críticas feitas hoje ao OP levam em conta a mitificação. Críticos da esquerda radical dizem: "O OP perdeu isso, perdeu aquilo". Fazem um confronto com uma visão romantizada, não com as dificuldades naturais que um processo de participação encontra no dia a dia.
JC - Em que medida o OP mudou em relação à sua origem?
Allegretti - Existem algumas transformações no OP de Porto Alegre que não estão na linha dos princípios originais que o inspiraram. As que podemos considerar menos positivas são de natureza conjuntural, como a situação política. E aqui não quero falar de direita ou de esquerda, mas de coesão política. Antes (quando surgiu o OP), havia um grupo reduzido de siglas que se juntava em torno de um grande partido. Era mais fácil tomar decisões corajosas. A nova coligação (com a eleição de José Fogaça, em 2004), contou com um número muito maior de partidos. Assim, fica difícil tomar decisões radicais, especialmente se os partidos são muito diferentes em termos de ideologia ou de preferência política. Isso deve ser levado em conta quando se julga o OP de hoje em relação à sua origem.
JC - Que outros equívocos o senhor percebe no OP?
Allegretti - Não se pode considerar o OP como um sistema fechado e parado no tempo. A cidade continua evoluindo. O OP é um sistema que precisa se adaptar às transformações da sociedade e do território. Ele não pode ser confrontado com uma experiência antiga, porque essa experiência precisa ser entendida com base nas condições que existiam no momento em que foi feita. A sociedade porto-alegrense hoje é mais próspera e mais justa do que em 1989. E o OP foi um dos artífices dessa transformação.
JC - O OP conseguiu se adaptar a essas transformações ou permanece parado no tempo?
Allegretti - O OP evoluiu, mas não tem dado conta das mudanças da sociedade. O sistema tem evoluído numa direção em que não consegue fazer frente a alguns fenômenos negativos. Com o tempo, começam a se constituir feudos. São grupos que conhecem bem o mecanismo, que sabem como atuar dentro do modelo e utilizam o OP para obter vantagens em interesse próprio. Cria-se uma relação clientelista dentro da sociedade, não necessariamente com o poder público. Por exemplo, uma pessoa promete algum benefício a determinado grupo se ele a ajudar. Então, dentro da participação, se cria um mecanismo perverso para atender a esse interesse.
JC - Há exemplos disso em outros lugares?
Allegretti - Sim, um dos primeiros Orçamentos Participativos de São Paulo, na época em que a Luiza Erundina era prefeita (1989-1992). Essa experiência suicidou-se. E uma das razões foi o excessivo poder dado às associações de moradores na gestão dos orçamentos locais. Isso criou um mecanismo de poder em torno dessas entidades que matou completamente o processo em poucos anos.
JC - Existem feudos no OP de Porto Alegre?
Allegretti - Isso estava acontecendo no momento em que entrou a nova administração, em 2005. Ela não era suficientemente coesa em torno do OP, porque havia muitos partidos de ideologias diferentes e alguns não acreditavam no OP. Nesse processo, o elemento mais negativo foi a inexistência de uma luta para defender os princípios básicos do OP frente à estruturação do autorregramento.
JC - O autorregramento é negativo?
Allegretti - É uma grande conquista democrática. Permite que as pessoas sintam que estão contribuindo para a criação das regras. Mas também pode haver uma decorrência negativa. Se alguns grupos se organizam bem na fase de autorregramento, podem transformar o processo em algo de interesse próprio e levá-lo para onde quiserem. Isso aconteceu em Porto Alegre quando se permitiu que delegados e conselheiros se reelegessem. É algo profundamente negativo, que impede a formação de novas lideranças. Os protagonistas são sempre os mesmos. Esses fatores põem em risco o futuro do OP e precisam ser tomados em conta.
JC - Como superar isso?
Allegretti - É preciso vontade política ou, pelo menos, disposição de enfrentar esse tabu através, por exemplo, de uma comissão de ética. Em Lisboa (Portugal), o OP nasceu com uma carta que contém todos os princípios norteadores. Esse ponto de partida formal dinamiza a sociedade e reduz os clientelismos. Isso permite que o sistema evolua, mas sempre confrontado com a carta de princípios. É como um documento constitucional, mas não se entra no mérito legal, porque seria uma burocratização que acabaria matando o processo de participação. Então, estamos num momento em que se faz necessário repensar o OP com base em um DNA constitutivo. O problema é que o DNA constitutivo do OP de Porto Alegre pode não corresponder à vontade política da administração atual. É por isso que é necessário o debate.
JC - Por que o senhor acha que a prefeitura pode não corresponder ao OP?
Allegretti - Tenho acompanhado as críticas feitas à impostação que foi dada ao Congresso da Cidade (por lideranças do OP à prefeitura). O Congresso pode ser um espaço interessante de confrontação sobre o que se quer para a cidade, num momento em que é normal para uma administração aceitar tudo o que chega, porque traz dinheiro e desenvolvimento, como a Copa do Mundo de 2014.
JC - O OP de Porto Alegre inspirou várias experiências no mundo. Elas conseguiram se desenvolver melhor?
Allegretti - Não acredito que existam experiências muito melhores do que a de Porto Alegre. Os Orçamentos Participativos de outros países são muito menos radicais. O problema é que os modelos brasileiros têm se burocratizado ao longo do tempo e tendem a ser repetitivos. Mas conheço bons OPs que conseguiram resolver problemas que o de Porto Alegre enfrenta. Outro exemplo positivo da experiência de Lisboa: há uma regra pela qual as obras precisam ser feitas em 180 dias a contar da data em que foram orçadas. Isso gera confiança da população na execução dos projetos, o que é fundamental. Outro exemplo é Ferrol, cidade da Galícia (na Espanha), onde o OP nasceu de baixo para cima. Os cidadãos pediram à administração para implementá-lo.
JC - O OP de Porto Alegre tem várias demandas atrasadas. O que fazer nessa situação: priorizar os passivos ou investir em novas obras?
Allegretti - Não acredito que exista uma resposta absoluta. Conversei sobre isso com os técnicos do governo estadual, no caso da Consulta Popular, que deixou um monte de demandas por fazer. São obras que foram escolhidas pela população. Se o governo decide ignorar essas obras e recomeçar o processo, as mesmas demandas reaparecerão. Ao mesmo tempo, as necessidades podem não ter sido coordenadas de maneira inteligente. No caso da Consulta Popular, eram necessidades espalhadas que não produzem uma política pública, apenas uma distribuição incoerente de dinheiro por todo o Estado.
JC - E qual é a solução mais viável?
Allegretti - Uma fórmula intermediária precisa ser encontrada. No caso de Porto Alegre, penso que uma boa solução teria sido a administração de José Fogaça ter dito: "Vamos realizar 30% das obras atrasadas do OP a cada ano". Uma parte do orçamento seria bloqueada para isso. Outra parte seria usada para fazer as novas obras. Mas ninguém obrigou o Fogaça a se comprometer com as obras do OP anterior. E hoje há uma dívida que torna a população descontente. É uma bola de neve e é preciso evitar esse erro no governo do Estado.
Giovanni Aldo Luigi Allegretti, 40 anos, é graduado em Arquitetura e doutor em Planejamento Urbano, Territorial e Ambiental pela Universidade de Florença, na Itália. Ao longo da vida acadêmica, especializou-se em processos de participação popular na gestão pública. Estuda os mecanismos de orçamento participativo implantados em diversos países, a partir da experiência adotada em Porto Alegre. Nascido na Itália, ele atualmente reside em Lisboa (Portugal), onde é pesquisador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, comandado pelo sociólogo Boaventura de Souza Santos. É co-diretor-executivo do doutorado em Democracia no Século XXI - na mesma universidade - e coordena o Observatório de Práticas de Participação, também pertencente ao centro. Em sua tese de doutorado, estudou a aplicação do Orçamento Participativo durante a gestão de Olívio Dutra (PT) no governo do Estado.
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