Muitos se perguntam por que motivos o Irã insiste em ter um programa nuclear. Os fins desse programa – bélicos ou pacíficos – geraram polêmica na comunidade internacional. Há aqueles que defendem o posicionamento iraniano, como o Brasil, enquanto outros países (Estados Unidos, principalmente) desconfiam das intenções do presidente Mahmoud Ahmadinejad. Em entrevista ao Jornal do Comércio, Maurício Santoro, professor do MBA de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas, explica quais as verdadeiras intenções do Irã e por que alguns países têm acesso mais facilitado à energia nuclear.
Jornal do Comércio - O senhor considera as sanções ao Irã legítimas? E como avalia a postura do país em relação a isso?
Maurício Santoro - Essa é uma quarta rodada de sanções que começou em 2006, quando o Irã anunciou que iria retomar seu programa nuclear. Isso foi uma consequência da eleição de Mahmoud Ahmadinejad para presidente: ele inverteu o curso tomado por seu antecessor, (Mohammad) Khatami, que tinha uma linha muito mais conciliatória com o Ocidente, com a União Europeia. O Ahmadinejad representa a linha dura do Irã, os setores mais conservadores, e a própria eleição dele tem sido chamada de a “segunda Revolução Islâmica”. Agora, por que isso aconteceu, por que houve uma guinada tão radical na política iraniana? Em grande medida, é consequência do 11 de Setembro e das guerras do Afeganistão e do Iraque. Tanto Iraque quanto Afeganistão fazem fronteira com o Irã e estão ocupados por tropas estrangeiras. A história recente da nação é muito traumática. O Irã foi invadido cinco vezes no século XX, duas pelos britânicos, duas pelos russos e uma pelo Iraque. E ainda teve uma série de intervenções estrangeiras na sua política, sobretudo dos EUA no golpe da década de 1950. É um país que tem uma tensão nacionalista latente e que explodiu nesses últimos anos – daí a retomada do programa nuclear iraniano. Oficialmente, todas as declarações do governo são no sentido de que é um programa pacífico, para gerar energia. É bastante questionável a resistência das autoridades iranianas em permitir o monitoramento das instalações, como é exigido pelo Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), do qual o Irã é signatário. Pelo direito internacional, essas sanções são legítimas na medida em que o Irã não está cumprindo com um acordo internacional que ratificou. O que poderia acontecer seria as autoridades iranianas se retirarem do TNP. E há precedente: a Coreia do Norte fez isso nos anos de 1990.
JC - Há um questionamento que nem é tanto dos defensores de Ahmadinejad, mas dos críticos dos EUA: por que as grandes potências podem ter acesso mais facilitado à energia nuclear e outros países não? Qual o critério utilizado para definir isso?
Santoro - O TNP é um acordo de 1968. Na época em que ele foi proposto na ONU, o embaixador brasileiro nas Nações Unidas era Araújo Castro, que foi ministro e um diplomata importante na política externa, diziam que era um acordo para promover o “congelamento do poder mundial”, para dividir as nações do mundo em dois grandes grupos. No primeiro, estariam aquelas que já tinham armas nucleares e continuariam a possuí-las – e o tratado faz apenas uma promessa muito vaga de que um dia, quem sabe, elas irão abrir mão dessas armas. No segundo, estariam os países que não possuíam armas nucleares e ficariam proibidos de desenvolvê-las – e, em troca, ganhariam incentivos para pesquisa nuclear com fins pacíficos. O Brasil se opôs ao TNP de 1968 até 1998, justamente com esse argumento, de que é um acordo muito injusto, que essa classificação dos países em dois grandes grupos é um reflexo da política de poder, e não algo que se justifique eticamente ou por outra razão. Existem países que nunca assinaram o TNP e desenvolveram armas nucleares, como Índia e Israel. E tem o caso da Coreia do Norte, que foi signatária e depois abandonou. Então, é um acordo injusto? É profundamente injusto. É muito provavelmente o acordo internacional mais desequilibrado que existe no âmbito da ONU. Mas, uma vez que um país tenha ratificado, deve acatá-lo, pois a adesão é voluntária. Dessa maneira, a nação pode se retirar a qualquer momento. Se o Irã acredita que o melhor caminho para garantir seus interesses nacionais é sair do tratado, isso é perfeitamente legítimo. O que nós temos hoje é uma disputa de poder em que o Irã quer continuar no tratado porque isso serve como uma declaração de credibilidade perante a comunidade internacional, mas ao mesmo se recusa a cumprir as exigências. Daí essa nova rodada de sanções.
JC - Em 1968 o Brasil já não concordava com o tratado. E agora o País se mostra um dos defensores de que o Irã produza energia nuclear. Essa discordância do passado influencia nessa ligação atual do Brasil com o Irã?
Santoro - Influencia um pouco, sim, pois essa mudança na posição brasileira foi muito controversa no Itamaraty e nas Forças Armadas. Ela foi tomada nos anos de 1990; na verdade, depois que o Brasil assinou uma série de outros acordos restringindo o uso de energia nuclear – inclusive nossa Constituição de 1988 proíbe a utilização de energia nuclear para fins bélicos. Acho que influenciou essa tomada de decisão em relação ao Irã no sentido de que, para muitos militares e diplomatas brasileiros, o TNP sempre foi um acordo profundamente injusto. Muitas pessoas dentro do Itamaraty avaliam que foi um erro do Brasil tê-lo assinado em 1998 e costumam fazer a comparação com a Índia. No mesmo ano em que o Brasil assinou, a Índia explodiu (em caráter experimental) sua bomba nuclear, enfrentou alguns anos de sanções, mas depois conseguiu não só eliminar essas sanções como obter um acordo de cooperação nuclear com os EUA, pois os norte-americanos passaram a ver no país um contraponto interessante à ascensão da China.
JC - Esse posicionamento atual do Brasil prejudica a imagem do País internacionalmente, como muitos críticos alegam?
Santoro - Implica certo desgaste na relação com os EUA porque para os norte-americanos, nesse momento, o Irã é uma das prioridades. Provavelmente continuará a causar, porque é um tema sensível para a Casa Branca. Mas, ao mesmo tempo, teve um elemento importante na política externa brasileira, que foi afirmar uma posição mais autônoma e mais independente do País, inclusive sinalizar para a comunidade internacional que o Brasil está se colocando ao lado de uma outra potência emergente, a Turquia, como um mediador no Oriente Médio, como um país que tem interesses naquela região. A leitura que eu faço desses últimos acontecimentos é uma leitura matizada. Ela implicou perdas na relação com os EUA, mas significou um ganho interessante nessa relação com o Oriente Médio.
JC - Até que ponto se deve levar a sério as declarações polêmicas de Ahmadinejad?
Santoro - Uma das consequên-
cias mais irônicas do 11 de Setembro, da política externa que os EUA adotaram após os atentados, foi transformar o Irã na principal potência regional do Oriente Médio. Porque o rival tradicional do Irã, que é o Iraque, está em ruínas. Ao mesmo tempo, os norte-americanos tiraram do poder um inimigo importante do Irã: os talibans. Apesar de os dois regimes serem fundamentalistas islâmicos, am-bos representam visões muito diferentes do Islã e um via o outro como herege. Por conta disso, qualquer declaração do governo iraniano, mesmo a retórica mais inflamada de Ahmadinejad, deve ser levada a sério. Eles (iranianos) são atores que têm uma influência decisiva em tudo o que está acontecendo no Oriente Médio, inclusive na estabilização pós-conflito no Iraque e no Afeganistão. Para se conseguir algum tipo de acordo de governabilidade nesses dois países, é preciso da colaboração dos iranianos. Ao mesmo tempo, temos nos EUA um governo bastante frágil do presidente Barack Obama, que precisa provar o tempo inteiro que é capaz de defender os interesses dos EUA.
JC - O tom conciliador do presidente Obama aparentemente não tem funcionado com o Irã.
Santoro - Ele propôs um termo de engajamento, de retomada do diálogo com o Irã, mas foi em frente. Para o governo iraniano hoje tem sido mais interessante se posicionar como o grande defensor da autonomia do Oriente Médio, como o grande crítico das potências ocidentais e de Israel. Apesar dessas rodadas de sanções, elas não afetam tanto a República Islâmica economicamente. Elas estão muito mais voltadas para um ator político iraniano, a Guarda Revolucionária. Essas sanções afetam de forma secundária o setor de petróleo e gás, que é o carro-chefe do país. Isso em grande medida porque entre os maiores parceiros comerciais do Irã estão a China, a Rússia e a França. Para esses países, é interessante criticar o governo iraniano, mostrar que não estão de acordo com o programa nuclear, mas tomando o cuidado de preservar esses interesses. No caso brasileiro, é um interesse que está mais localizado no setor do agronegócio. O Irã hoje é o segundo maior importador de carne do Brasil, só perde para a Rússia.
JC - Qual é a alternativa para o Irã se safar das sanções que não seja desistir do enriquecimento de urânio?
Santoro - O urânio pode ser enriquecido a 20%, isso é suficiente para uso em aparelhos médicos, mas não para armas nucleares. A questão é se o Irã vai abrir ou não suas instalações para inspeção da ONU. Esse é o grande dilema.
JC - Por que a relutância?
Santoro - O motivo mais apontado seria esconder aplicações militares dessa tecnologia. Fazendo comparação com o Iraque: após a derrota na guerra do Golfo, o governo abriu suas instalações para a ONU (não foram encontradas armas químicas, como sugeria o ex-presidente George W. Bush). Evidentemente que o Irã quer ter essa capacidade de desenvolver armas. É uma maneira de se defender em um cenário de profunda ameaça a sua soberania nacional, por conta dessas guerras todas e de sua rivalidade com Israel.
JC - Existem possibilidades, mesmo que remotas, de os EUA começarem uma guerra lá?
Santoro - Remotas, pelas dificuldades que vêm tendo no Oriente Médio. Acabaram de retirar tropas do Iraque e parece que até 2011 o mesmo será feito no Afeganistão. Então não existe hoje nos EUA um grande apetite por mais um conflito na região.