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Coluna

- Publicada em 20 de Março de 2015 às 00:00

De novo Beckett, mas renovado


Jornal do Comércio
Na antiguidade clássica, Platão concebeu o universo humano como uma caverna a que os homens estavam confinados, presos uns aos outros por grilhões, de costas para a saída, de onde filtrava escassa luz e sem se poderem mover ou conversar entre si. Samuel Beckett, na primeira metade do século XX, idealizou situação muito próxima: seus dois personagens encontram-se enterrados na areia, ou em cavernas furadas no chão, sendo gradualmente sepultados em vida, na medida em que esta areia sobe-lhes pelo tronco e vai cobrindo tórax e pescoço. A encenação de Oh, os belos dias (ou Dias felizes, conforme a tradução), que o diretor paulista Rubens Rusche assinou, para a interpretação de Sandra Dani e Luiz Paulo Vasconcellos, atualiza aquela perspectiva desenvolvida na peça estreada em 1963 (editada em 1961). Dividida em dois atos, no primeiro deles a mulher como que comanda as ações: ela se encontra enterrada até a cintura, tem certa mobilidade, é falante, vaidosa e serve-se constantemente de uma bolsa-valise que se encontra a seu lado, penteando-se, colocando batom nos lábios, encontrando até mesmo uma pistola, que dispõe a seu lado, como que pronta para ser utilizada, se preciso for. Seu companheiro acha-se numa cova, escondido da vista do público. Ele aparece parcialmente, de vez em quando, mas sua aquiescência às reflexões da mulher é fundamental para que ela se sinta viva (assim como seu olhar sobre ela, ecoando o existencialismo sartreano, mas o invertendo: em Sartre, o olhar é redutor e negativista; aqui, o olhar é necessário para confirmar até mesmo a simples existência).

Na antiguidade clássica, Platão concebeu o universo humano como uma caverna a que os homens estavam confinados, presos uns aos outros por grilhões, de costas para a saída, de onde filtrava escassa luz e sem se poderem mover ou conversar entre si. Samuel Beckett, na primeira metade do século XX, idealizou situação muito próxima: seus dois personagens encontram-se enterrados na areia, ou em cavernas furadas no chão, sendo gradualmente sepultados em vida, na medida em que esta areia sobe-lhes pelo tronco e vai cobrindo tórax e pescoço. A encenação de Oh, os belos dias (ou Dias felizes, conforme a tradução), que o diretor paulista Rubens Rusche assinou, para a interpretação de Sandra Dani e Luiz Paulo Vasconcellos, atualiza aquela perspectiva desenvolvida na peça estreada em 1963 (editada em 1961). Dividida em dois atos, no primeiro deles a mulher como que comanda as ações: ela se encontra enterrada até a cintura, tem certa mobilidade, é falante, vaidosa e serve-se constantemente de uma bolsa-valise que se encontra a seu lado, penteando-se, colocando batom nos lábios, encontrando até mesmo uma pistola, que dispõe a seu lado, como que pronta para ser utilizada, se preciso for. Seu companheiro acha-se numa cova, escondido da vista do público. Ele aparece parcialmente, de vez em quando, mas sua aquiescência às reflexões da mulher é fundamental para que ela se sinta viva (assim como seu olhar sobre ela, ecoando o existencialismo sartreano, mas o invertendo: em Sartre, o olhar é redutor e negativista; aqui, o olhar é necessário para confirmar até mesmo a simples existência).

No segundo ato, a mulher está mergulhada até o pescoço. Seus seios, que a envaideciam, não mais aparecem. Durante todo este segundo ato, ela como que fala sozinha. Ao final, contudo, e surpreendentemente, o homem aparece, numa cova à frente do palco, plenamente visível ao público. Exibe-se num contorcionismo dirigido a colher um aplauso da mulher e tenta, em vão, alcançá-la ... Não, na verdade, parece que ele quer alcançar, efetivamente, é a arma. Porque fica evidente que a areia vai sepultar a mulher e embora ele esteja aparentemente liberto (até saiu do buraco em que estava), condena-se à mais absoluta solidão...Esta situação-limite radical, imaginada por Beckett, é sua visão de mundo. Um universo varrido de sentido, quase sem vida (apenas uma formiga atravessa a terra em torno da mulher).

Independentemente desta visão de mundo, dramaticamente é admirável o tour de force que Beckett realiza ao concentrar, num quase monólogo, toda uma filosofia. Ação física quase nula no intérprete, que se encontra enterrado ou ausente; fala constante, mas obrigatoriamente pausada e marcada por longos silêncios: os intérpretes precisam ter amplo domínio corporal e, sobretudo, da expressão vocal e fácil para transmitir ao espectador o que o dramaturgo espera que seja transmitido. O cinema facilitaria a tarefa com os closes. No teatro, inexiste tal alternativa. Todos os espectadores estamos concentrados na atriz - raramente no ator -, porque é deles que depende todo o espetáculo. Neste sentido, Sandra Dani merecidamente foi reconhecida, valorizada e premiada em São Paulo, onde esta produção estreou e cumpriu longa carreira. Suas expressões faciais e entonações são perfeitas: ela troca a tonalidade da voz, ela enfatiza, silencia, sugere... e Luiz Paulo, mostrando apenas a careca, ou aparecendo, ao final, sem as calças da dignidade, mostra o necessário equilíbrio de presença de cena de que um ator necessita em um espetáculo.

Apesar do calor exasperante do Teatro Renascença, o espetáculo emocionou e provocou reflexões. Ao final, a gente se liberta da pressão da situação dramática, mas quase que aplaude, pedindo mais. É um espetáculo admirável, que mostra dois intérpretes absolutamente maduros e um diretor muito consciente do que seja a linguagem teatral: comedida, com gestos mínimos e necessários, com um cenário minimalista que concentra todo o universo e a valorização da palavra dramática, devidamente engrandecida pela representação cênica.

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