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Coluna

- Publicada em 06 de Fevereiro de 2015

O palco e o abismo

O novo filme do mexicano Alejandro González Iñárritu não é apenas a confirmação de que o cineasta tem lugar assegurado entre os grandes nomes do cinema contemporâneo. O diretor, em seu quinto longa-metragem, coloca em cena de forma brilhante o tema da segunda chance a ele acrescentando, tanto do ponto de vista formal quanto também pelas observações do comportamento humano, virtudes e inovações que fazem deste Birdman ou a inesperada virtude da ignorância um relato repassado de méritos e até mesmo de inovações, criadas, como sempre acontece, de atentas observações de experiências anteriores. Não é a primeira vez que a ideia de uma narrativa sem cortes anima um cineasta. Mas agora o que se vê é algo inovador, pois se o espaço é sempre o mesmo o tempo é diferente. Assim, enquanto a câmera percorre os camarins, o palco e mesmo a plateia de um teatro - e também a rua em alguns momentos - as horas não param e a ação avança e até, de certa maneira, retrocede, para explicar as origens da angústia que atormenta o protagonista. Este é um ator que ficou famoso ao interpretar um herói cinematográfico e que depois, ao recusar a participação na parte de número 4 de uma série perdeu o prestígio que agora tenta recuperar, dirigindo e interpretando uma peça. Estes são os dados exteriores do filme, pois o que de fato interessa ao cineasta é a tentativa de recuperar um passado perdido, simbolizado pelas presenças da mulher e da filha.

Perder o prestígio e a família é um peso difícil de suportar. O teatro e a presença do pássaro, que insiste em incentivar a inconformidade do protagonista, são os elementos que se constituem em escudos protetores. Provavelmente não é uma coincidência o fato de, formalmente, o diretor ter escolhido Festim diabólico como modelo. Aquele foi o filme no qual Hitchcock explorou, pela primeira vez, a ideia de um filme sem cortes, embora o mestre tenha utilizado duas vezes tal recurso, além dos disfarces para a troca de rolos no aparelho. Hitchcock é o diretor de Os pássaros, no qual as aves exerciam também papel simbólico fundamental. No filme de Iñárritu o pássaro até interfere na ação, transformando uma corrida de táxi num voo libertador, quando o espectador tem a oportunidade de ver trechos dos filmes interpretados no passado pelo personagem de Michael Keaton. Mas nem sempre a imaginação tem a força suficiente para alçar o protagonista e afastá-lo da realidade. A tentação do abismo é claramente sugerida em algumas cenas, entre elas as dos diálogos entre a filha e o ator que interpreta um dos papéis principais da peça. Esse tema propicia a Iñárritu o notável plano de encerramento, quando realidade e fantasia se confundem e registram a recusa da contemplação do real.

E há também a perfeita e inspirada utilização da faixa sonora. O diretor, que confessou que Biutiful, seu filme anterior, devia muito ao concerto em sol de Ravel, agora ministra uma aula de como utilizar música em cinema. Ele emprega trechos de várias obras musicais, entre eles fragmentos da bela segunda sinfonia de Rachmaninov, para definir com precisão a busca de um equilíbrio perdido e emprega a bateria para realçar a agressividade e o desespero. Nesse aspecto, o filme atinge a perfeição e lembra momentos de mestres como Bergman, Kubrick, Malle e Visconti pela forma como valoriza a imagem, enriquecendo-a através do emprego de peças anteriormente compostas. Iñárritu que tem um estilo de filmar que sempre procura o máximo de realismo, além de realçar a dramaticidade das situações filmadas, surge agora recorrendo em muitas passagens ao humor, seja através dos diálogos, seja através de situações, aproximando-se da alta comédia, que certamente tem origem em muitos filmes clássicos americanos. Cukor e Mankiewicz são nomes a serem lembrados e que ressurgem atualizados nesta mistura de teatro e cinema. A cena em que o protagonista narra para o ator vivido por Edward Norton os problemas de sua infância, na verdade uma atuação privada, resume um filme no qual a encenação explicita em cena o drama interior. E temos até o teatro na rua, como a lembrar que a fantasia tem a força de desviar o olhar do abismo e da tragédia.