O incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, que provocou a morte de 242 jovens e deixou mais de 600 com sequelas físicas e emocionais, completa dois anos hoje. As chagas da tragédia são ainda mais dolorosas pelo fato de, hoje, ninguém estar preso pelas mortes.
Um dos principais motivos de revolta por parte dos familiares das vítimas é o não indiciamento criminal de gestores públicos e a certeza de que a Kiss só estava em funcionamento no dia 27 de janeiro de 2013 porque houve fraude na obtenção de licenças. Naquela madrugada, o fogo teve início quando um sinalizador, aceso por um dos integrantes da banda Gurizada Fandangueira, queimou a espuma de revestimento acústico do teto da boate e espalhou cianeto, um gás extremamente tóxico.
O último inquérito da Polícia Civil sustenta que, no ano de 2011, a boate funcionou sem a licença de operação, mas com conhecimento e aval do município. A conclusão apresentada pelos delegados Marcelo Arigony e Sandro Meinertz, em julho do ano passado, foi de que, “em nenhum ano, a boate Kiss poderia ter obtido a licença de operação, mas, uma vez emitida, deveria ter sido imediatamente cassada. Por conseguinte, não poderia ter sido liberado o alvará de localização com base em licença de operação irregular. Assim, a boate Kiss nunca poderia ter funcionado”, dizia o inquérito.
Para Walter Souza Cabistani, diretor de assuntos jurídicos da Associação dos Familiares das Vítimas e Sobreviventes da Tragédia Ocorrida na Boate Kiss de Santa Maria, o maior problema enfrentado hoje em relação ao caso é a não responsabilização da administração municipal. “O Ministério Público, ao invés de trabalhar como acusador, está protegendo os gestores. O último inquérito foi claríssimo sobre a existência de gestores envolvidos”, criticou.
Em dezembro, foram arquivados parcialmente os indiciamentos referentes a crimes contra a administração ambiental. Entre os que foram isentos de responsabilidade, estavam três funcionários públicos. Luiz Alberto Carvalho Júnior, secretário de Proteção Ambiental na época, também teve o processo arquivado. Segundo o inquérito, no dia 22 de setembro de 2011, Carvalho informou ao Ministério Público que a licença de operação da Kiss estava vencida, mas não fez nada para regularizar. “Portanto, verifica-se uma conduta omissiva do secretário, que deixou de agir, mesmo tendo consciência de que a boate não poderia funcionar sem a licença de operação e que caberia ao mesmo tomar providências para que isso não ocorresse”, afirmou o inquérito da Polícia Civil.
No entendimento do MP, o fato não teve relação com o incêndio. Entretanto, o órgão solicitou ao Juizado Especial Criminal de Santa Maria parte do inquérito policial e da certidão de antecedentes criminais do ex-secretário, para análise do indiciamento pelo crime de prevaricação.
Para Cabistani, a motivação para a emissão de documentos de maneira ilegal foi a ganância dos servidores. Por isso, devem ser responsabilizados adequadamente. O diretor da associação ressalta que luta pelo direito das centenas de famílias que foram abaladas pelo incêndio, entre elas, a sua própria. Seu filho, Walter de Mello Cabistani, de 20 anos, estava na Kiss no dia da tragédia e perdeu a vida. “Meu filho já estaria formado em Direito. Ele queria ser advogado da área criminal. Essa é uma incoerência da vida, pois atualmente luto por um crime cometido contra ele, e não é ele que defende as pessoas”, lamenta.
Processo criminal conta com depoimento de quase 200 pessoas
Os sócios da casa noturna, Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, e os músicos da Gurizada Fandangueira Marcelo dos Santos e Luciano Augusto Leão foram denunciados pelo Ministério Público por homicídio doloso qualificado (motivo torpe e meio cruel) e tentativa de homicídio de 636 feridos. Os quatro tiveram a prisão temporária decretada em janeiro de 2013 e a preventiva em março do mesmo ano.
Contudo, em maio de 2013, o Tribunal de Justiça revogou a prisão e os réus passaram a responder em liberdade. O processo criminal é conduzido pelo juiz Ulysses Louzada. Até agora, foram ouvidos 114 sobreviventes, 16 testemunhas de acusação e 49 de defesa. O magistrado ainda ouvirá 24 peritos que atuaram no caso. Feito isso, Louzada decidirá se haverá ou não reconstituição e, após, deve interrogar os réus.
Na esfera cível, há uma ação coletiva requerida pela Defensoria Pública do Estado, que trata da indenização dos parentes das vítimas, e uma Ação Civil Pública ajuizada pelo MP, que apura a suspeita de improbidade administrativa contra quatro oficiais do Corpo de Bombeiros.
Grupo faz nova vigília em frente à casa noturna
Para marcar a data, o movimento Santa Maria do Luto à Luta realizou uma caminhada silenciosa, com velas acesas, até a boate, onde foi feita vigília até o amanhecer de hoje. De acordo com o grupo, o ato marca dois anos de luta, sem justiça e de descaso com a vida. Em 2013, no mesmo dia, uma multidão se reuniu em frente à casa noturna para homenagear as vítimas.
O Acolhe Saúde, serviço de atendimento psicossocial destinado aos familiares das vítimas e sobreviventes da tragédia, está atendendo desde sábado em regime de plantão, com uma equipe de 18 profissionais, como psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais, médicos clínicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem.