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Coluna

- Publicada em 31 de Outubro de 2014

Feras reveladas

A explosão de talento em todas as cenas de Relatos selvagens não chega ser uma surpresa. Há muito tempo que o cinema argentino, através de seus mais importantes realizadores, vem cativando público e crítica. Alguns cineastas e atores daquele país já declararam em entrevistas que aqui no Brasil só estamos vendo os melhores filmes e que a maior parte da produção daquela cinematografia está muito longe em termos de qualidade do que tem chegado às telas brasileiras. De qualquer maneira, não há como deixar de constatar então que alguns diretores argentinos têm colocado aquela cinematografia entre as melhores. Realizado em coprodução com a Espanha, o filme dirigido por Damián Szifrón espalha virtudes acima da média em todos os níveis de realização. É necessário destacar, também, que o filme inova o gênero da narrativa em episódios, fazendo com que o mesmo tema seja abordado em cada capítulo por meio de variações tão brilhantes quanto surpreendentes. A realização é tão notável que a sensação é a de que cada segmento é superior ao antecedente, como se a intensidade fosse aumentando até chegar a um final devastador como sátira e cruel pela maneira como retira máscaras e expõe tudo o que as convenções e os sorrisos falsos procuram esconder. Essa história reveladora tem igualmente um grande poder de síntese. Szifrón não perde tempo e vai de forma direta ao que interessa. Este painel integrado por um prólogo e cinco episódios é, na verdade, um olhar crítico sobre um mundo que procura uma forma de se afastar da barbárie e seguidamente termina percorrendo o caminho que o leva de volta a um cenário brutal e primitivo.

A agressividade contida pelas regras impostas pela civilização pode se manifestar de várias formas. E nem sempre é percebida nos primeiros momentos. O prólogo nesse sentido é perfeito. Um crítico musical e uma modelo dialogam a bordo de um avião e terminam descobrindo um ponto em comum: ambos conhecem um mesmo personagem, por eles humilhado. Mas isso é só o começo. O voo é uma reunião planejada e da qual todos os envolvidos, como personagens de Buñuel, não poderão sair. É a vingança e o castigo exercidos de forma terrível, inclusive abalando o cotidiano de quem parece estar imune a tal gênero de agressão. Este episódio é separado dos demais pelos créditos, sendo também o único em que a fantasia predomina de certa forma. Nos demais, ao flagrar o cotidiano de seus personagens, o realizador se dedica a explorar o lado oculto do ser humano, através de situações e também de diálogos que conferem solidez a cada figura. No episódio do engenheiro, por exemplo, a primeira imagem é sombria e vemos o protagonista preparando uma explosão. Ele próprio se transformará numa bomba humana, depois que todos os seus pedidos de justiça são negados pela burocracia. Este episódio é uma espécie de síntese do filme Um dia de fúria, realizado por Joel Schumaker em 1993. Agora, Ricardo Darín, notável outra vez, assim como Michael Douglas no outro filme, se deixa levar pela cólera e termina se transformando numa espécie de herói, uma situação que diz mais do que muitas palavras.

Os episódios são quase todos assim. E a vingança não ocupa todos os espaços pelo fato de um deles tratar da corrupção, ao mostrar como instrumentos legais podem ser usados para esconder culpados e encenar farsas, outra forma de esconder o comportamento agressivo. No segmento que transcorre em uma estrada, o realizador se esmera para transformar os acontecimentos numa regressão que parece não ter fim e se torna, a cada momento, mais assustadora. E na peça que encerra essa marcha para o primitivismo, uma festa de casamento, temos em cena uma mescla de Frank Capra e Robert Altman. Do primeiro vem a figura do anjo salvador, que impede que a protagonista cometa o mais desesperado dos gestos. Só que a figura, que num primeiro momento parece o símbolo da pureza, rapidamente é arrastada pelo impulso regido pela vingança. E do segundo, essa maneira cáustica de investir contra as convenções e os cerimoniais. E a forma como é encenado o final feliz faz com que tal recurso se transforme num toque final de irreverência, ponto final num dos melhores filmes dos últimos anos.