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Coluna

- Publicada em 17 de Outubro de 2014

A farsa

Desde que realizou, em 1995, seu segundo longa-metragem para o cinema, o impressionante Os sete crimes capitais, o diretor David Fincher tem procurado manter sua obra voltada para a revelação do lado oculto da vida de seus personagens, com o intuito de revelar ao espectador o que está escondido pelas cortinas das convenções e pelas máscaras exigidas por rituais impostos pela civilização. Certamente que não por acaso no filme citado havia a referência às maiores e mais graves desobediências. Mesmo que em seus trabalhos seguintes não tenha conseguido repetir o impacto daquela obra, o cineasta tem se mantido entre aqueles poucos que, trabalhando na área do filme destinado a grandes plateias, estão contribuindo para que o cinema não caia totalmente nas mãos de mercenários interessados apenas em números. Esta arte-indústria que é o cinema necessita de resposta nas bilheterias, mas é fundamental que vozes individuais e dotadas de personalidade se façam ouvir e tenham seu espaço. Este Garota exemplar, o novo filme de Fincher, se harmoniza perfeitamente com a obra anterior do realizador, na medida em que retoma alguns de seus temas principais, entre eles o da violência, que, contida pelas imposições, termina se impondo e fazendo com que os personagens se transformem em figuras de um drama revelador.

Há problemas no desenvolvimento da ação, pois é óbvio que certas situações e seu desenvolvimento são marcadas pela incoerência e mesmo pela facilidade com que certas encenações da protagonista são realizadas. Mas não é possível negar a capacidade de Fincher em manter a atenção do espectador pela forma com que sabe criar um clima de suspense, seja pela utilização da imagem, seja pelo emprego da música. E também se impõe a constatação de que o filme atual é uma espécie de prolongamento do trabalho anterior do cineasta, Millenium, no qual a mulher aparecia não apenas como a auxiliar do investigador, pois também surgia como uma cruel vingadora. E o casal de Os sete crimes capitais era vítima da mais cruel das irracionalidades, só revelada naquele antológico trecho que levava os policiais a uma terrível descoberta. Esta busca por elementos não revelados ao primeiro olhar e que são os verdadeiros orientadores de ações individuais está no centro do cinema de Fincher, até mesmo em A rede social, que está muito longe de ser apenas uma visão superficial sobre formas modernas de comunicação entre pessoas.

Desumanidade talvez seja a palavra fundamental. Ao descrever a trajetória deste casal que vive um romance em Nova Iorque antes de ser obrigado a vivenciar outra realidade, Fincher volta a seu tema predileto: a deflagração de forças até então contidas e que passam a agir de forma devastadora, numa resposta que também é uma vingança. Só que mesmo voltando a um universo conhecido, o diretor, baseado em livro de Gillian Flynn, adaptado pela própria autora, parece agora igualmente interessado nos rituais que procuram transformar a aparência na essência. É clara a crítica ao espetáculo no qual tudo parece transformado. A ditadura dos meios de comunicação faz da imagem não um instrumento de revelação, mas uma forma de impor inverdades e assim esconder imperfeições e agressividades. Tudo é ensaiado para impor falsidades. O espetáculo atinge seu ponto mais revelador na forma como a protagonista atrai o antigo namorado para uma armadilha fatal. As referências literárias e musicais são de repente substituídas pela maior das violências, transformada pela edição de imagens feita pela própria personagem num ato de defesa. O tema da manipulação aqui surge de forma explícita, resumindo e definindo tudo o que havia sido mostrado antes. A farsa então é revelada ao espectador, mas não ao público-personagem do filme, que continua acreditando no par perfeito que havia sido momentaneamente desfeito. Garota exemplar ainda não nos devolve o cineasta de Os sete crimes capitais, mas possui algumas das qualidades do melhor cinema-espetáculo, até por saber ser conciso no momento de expor as superficialidades e as distorções nos relacionamentos humanos.