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Coluna

- Publicada em 12 de Setembro de 2014

Presença do passado

Alain Resnais (1922-2014) encerra sua filmografia com um trabalho no qual podem ser observadas as características principais de sua obra. Amar, beber e cantar é uma espécie de resumo de uma trajetória que enriqueceu o cinema e assim se impôs como um elemento maior da cultura contemporânea. Antes do impacto provocado por Hiroshima, meu amor, o cineasta já tinha antecipado o papel que exerceria no enriquecimento da arte cinematográfica com o média-metragem Noite e nevoeiro, um dos maiores momentos do documentário ao colocar na tela o horror criado pelo nazismo de forma a transformá-lo em expressão da agressividade humana, ao mesmo tempo em que ampliava o tema da culpa e da responsabilidade. Esse tema seria desenvolvido de forma ainda mais contundente em Hiroshima, no qual o cineasta via na cidade destruída e seus mortos e feridos uma consequência da mesma agressividade que havia escolhido como vítima uma jovem francesa humilhada pela intolerância. Deste encontro entre um arquiteto japonês e uma atriz francesa, o realizador extraiu belas variações sobre o tema da memória e do esquecimento. Na época, causando entusiasmo na maioria da crítica, o filme encontrou resistências entre os que nele pensaram encontrar apenas um panfleto político, esquecendo que Resnais foi bastante corajoso ao denunciar, também, a violência dirigida contra a jovem apaixonada por um soldado alemão. O filme seguinte, outro momento maior de todo o cinema, O ano passado em Marienbad, retomava o tema e, de certa forma, fazia uma leitura esclarecedora da obra-prima anterior.

Trabalhando sempre sobre roteiros escritos por outros, Resnais é a prova definitiva de que cinema é a arte da imagem. A abertura de Hiroshima, talvez o maior prólogo de um filme em todos os tempos, demonstra isso com clareza. Mas Resnais não esquece a palavra. Ela completa o sentido da imagem, sendo ao mesmo tempo completada por ela, assim como na ópera palavra e música mutuamente se enriquecem. Muitos viram em Hiroshima a influência do teatro musical: o prólogo é como uma abertura de ópera, a imagem da atriz no espelho é encenada como se fosse uma ária, as multidões que protestam fazem o papel do coro. Em Marienbad essa influência é outra vez clara, como se tudo fosse um dueto e por vezes um trio. E sendo ópera, o cinema de Resnais é também teatro. De certa forma, seus últimos filmes e, sobretudo este que agora estamos vendo, lembram o melhor Mankiewicz, que encerrou a carreira com uma obra-prima que homenageava o teatro, sem deixar de ser cinema de primeira: Jogo mortal. A mescla entre cinema e teatro proposta por Resnais em Amar, beber e cantar não se limita a ser um exercício formal. O diretor está propondo uma meditação sobre a fantasia e a realidade, a memória e o esquecimento, o passado e o presente. E sem esquecer o humor, presente em boa parte da narrativa, até mesmo na manifestação de um personagem, que deixa clara sua preferência pelo cinema.

Um grupo de teatro amador que prepara uma peça é perturbado pela doença terminal de um outro personagem, que nunca aparece. Ele é parte do passado de cada um deles e passa a ser uma figura que só aparece na última sequência, quando o passado dos demais é sepultado, mas não esquecido.  No filme, o cenário exerce papel destinado a mesclar realidade e fantasia. Por vezes, a palavra pertence à peça que está sendo ensaiada, por vezes, tudo se mescla e o teatro passa a ser representação da vida de cada personagem do filme. Todos eles são perseguidos pelo passado, todos tentam reconstruí-lo, de uma ou outra maneira. No filme anterior, Vocês ainda não viram nada, Resnais abordava assunto semelhante, não faltando mesmo a presença da nova geração no encerramento. Trabalhando agora sobre uma peça de Alain Ayckbourn, o cineasta volta ao tema da necessidade da memória. E a ironia, criada também por uma direção de intérpretes primorosa, é elemento decisivo para que este painel sobre reações humanas diante do inesperado seja um olhar sobre o domínio do passado sobre o presente de cada ser humano. E também a constatação que o passado é valioso quando integra a memória, deixando ser um tirano a agir nas sombras.