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50 ANOS DO GOLPE

- Publicada em 01 de Abril de 2014 às 00:00

Advogados relatam a atuação durante os anos de chumbo


JOÃO HENRIQUE WILLRICHOAB/DIVULGAÇÃO/JC
Jornal do Comércio
Há cinquenta anos, com a deposição do presidente João Goulart, vozes começaram a ser caladas gradativamente no Brasil. Por meio de um golpe, nasceu a ditadura militar, que perdurou por 21 anos. O tempo de democracia e liberdade findou e se afogou em um mar de proibições, com a prática disseminada da censura e o consequente medo silenciado. Mediante um processo político que não resultou em grandes rupturas com o passado autoritário, os brasileiros se viram livres novamente em 1985, com a eleição indireta de Tancredo Neves, que morreu antes de tomar posse. José Sarney assumiu o posto e, dessa forma, se iniciou a Nova República, preparando o terreno para a nova Constituição, promulgada em 1988. Mesmo assim, as marcas ficaram. Lembranças dolorosas de quem viveu na época e de parentes daqueles que foram presos, torturados ou que sofreram, de certa forma, com os excessos da ditadura, seguem vivas. Para os envolvidos, nunca será fácil discorrer sobre o assunto. Quanto às novas gerações, fica o alerta: é preciso lembrar para que nunca mais aconteça. 

Há cinquenta anos, com a deposição do presidente João Goulart, vozes começaram a ser caladas gradativamente no Brasil. Por meio de um golpe, nasceu a ditadura militar, que perdurou por 21 anos. O tempo de democracia e liberdade findou e se afogou em um mar de proibições, com a prática disseminada da censura e o consequente medo silenciado. Mediante um processo político que não resultou em grandes rupturas com o passado autoritário, os brasileiros se viram livres novamente em 1985, com a eleição indireta de Tancredo Neves, que morreu antes de tomar posse. José Sarney assumiu o posto e, dessa forma, se iniciou a Nova República, preparando o terreno para a nova Constituição, promulgada em 1988. Mesmo assim, as marcas ficaram. Lembranças dolorosas de quem viveu na época e de parentes daqueles que foram presos, torturados ou que sofreram, de certa forma, com os excessos da ditadura, seguem vivas. Para os envolvidos, nunca será fácil discorrer sobre o assunto. Quanto às novas gerações, fica o alerta: é preciso lembrar para que nunca mais aconteça. 

Na esteira das inúmeras violações cometidas durante o período, aqueles que tinham o dever de defender os perseguidos políticos também sofreram nas mãos do regime. Incontáveis são os casos de advogados que foram impedidos de realizar suas funções como agentes do Direito. Nas mais de duas décadas de ditadura, o direito à defesa não era respeitado, assim como o trabalho daqueles que lutavam para garantir esse direito para os perseguidos. Dentro desse contexto, a atuação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) se destacou como uma voz de resistência e de defesa às garantias constitucionais.

O advogado trabalhista Honório Campos Peres, de 90 anos, é uma das vítimas da ditadura. Sobreviveu à tortura e à prisão. Envolveu-se em movimentos estudantis como militante e dirigente, em meados de 1946. Quando a ditadura começou, em 1964, não foi preso. “Fui controlado. Sempre havia uns dois policiais na frente da minha casa”, relata o advogado. 

No dia 8 de março de 1965, Peres foi capturado na residência dele, na rua Santana, em Porto Alegre. “Quando cheguei em casa, tinha lá um gajo, à paisana, com uma carteira do Exército. Esperava por mim. Na rua, mais dois. Como eu ia reagir?”, indaga Peres. “Ninguém sabia onde eu estava, nem mesmo eu. Andamos muito de carro, quase uma hora, e eu conseguia identificar que ainda estávamos na cidade porque ouvia os bondes. Quando chegamos à casa onde fiquei preso, era difícil dormir. Havia um barulho alto de motor, os ventiladores ligados, era muito frio.” Ele conta que, por meio de uma fresta na porta, identificou que estava em frente à casa do também militante Edvaldo Pereira Paiva, na rua Luís Afonso, no bairro Cidade Baixa. A noção de que sabia onde estava lhe deu certa força para seguir. “Não deixavam os presos juntos, ficávamos cada um em lugar. Fui um pouco sacrificado. Quando me prenderam, deram-me um tapa muito forte. Caí e fingi estar desacordado. Levaram-me, então, para o Hospital Militar. De lá, para o Regimento Osório, onde fiquei uns dez dias. Fui um dos sortudos”, conclui Peres. “Apesar de ter sofrido, sempre tive algum conhecido que conseguiu me ajudar. Alguns não tiverem esse privilégio e sofreram muito mais do que eu.”

O advogado Werner Becker, 78 anos, também teve participação intensa nos anos de chumbo. Atuou na Justiça Militar em Porto Alegre e em São Paulo. “Sobraram poucos advogados para defender os presos políticos. Ninguém queria. Eram dezenas de réus perante auditorias militares”, conta. Para Becker, a justiça rio-grandense foi absolutamente covarde de 1964 a 1967. “A auditoria militar tinha mais coragem para absolver ou reduzir as penas. Eles tinham mais tranquilidade para absolver. A justiça comum tinha medo, mas isso não dá a ninguém o direito de ser covarde”, enfatiza. Quanto à atuação no Departamento de Ordem Política e Social (Dops), Becker narra a atmosfera de receio que pairava sobre eles. “Quando um de nós era chamado no Dops, já ficava implícito que se a pessoa não voltasse, tínhamos que entrar em contato. Alguém sempre ficava na retaguarda.”

Becker ainda ressalta, com veemência, que o perigo não acabou. “Precisamos chamar a atenção da população. As forças totalitárias e fascistas estão à espreita. É só observarmos a adesão, mesmo que discreta, a essas Marchas da Família com Deus pela Liberdade. Foi esse movimento direitista que deu força ao golpe em 1964”, alerta o advogado.

O também advogado Omar Ferri, de 80 anos, por sua vez, menciona uma série de derrubadas de sistemas democráticos. Com o apoio dos Estados Unidos, os militares que depuseram Jango também obtiveram sucesso na derrocada dos presidentes da Bolívia, do Chile, da Argentina e do Uruguai. “Para eles, o inimigo de uma ditadura em particular era inimigo de todas”, retrata. 

Ferri era responsável pela impetração de habeas corpus em nome de presos políticos. “Muitos nem sabiam o motivo pelo qual estavam presos. Outros tantos estavam lá injustamente”, conta. “Trabalhei em defesa dos perseguidos políticos. Tínhamos pouco apoio da imprensa. Nenhum jornal denunciava os abusos e crimes cometidos pelo Dops. Ficávamos de mãos atadas.” 

Ferri atuou de maneira combativa em um dos casos de sequestro mais acompanhados da época. Os uruguaios Lílian Celiberti e Universindo Dias, bem como os dois filhos dela, foram capturados em Porto Alegre por militares também uruguaios, com o apoio de brasileiros. O crime fez parte da Operação Condor, uma das muitas executadas pelos serviços secretos das ditaduras do Cone Sul. Quando Lilia, a mãe de Lílian, obteve ciência do estado da filha e conseguiu denunciá-lo, a lei pôde, finalmente, tentar intervir. “A Ordem dos Advogados do Brasil conseguiu entrar nesse quadro tenebroso a partir da denúncia da Lilia. As crianças foram entregues ao avô e Lílian e Universindo foram condenados a cinco anos de reclusão, mas não foram mortos”, relembra Ferri. “A Justiça ouviu o menino Camilo, de nove anos, filho de Lílian. Ele reconheceu os algozes e, assim, foi possível instaurar um inquérito contra eles.” O casal e as crianças foram os únicos sobreviventes entre os uruguaios sequestrados no exterior.

A advogada Ana Eni Machado Millan, de 80 anos, também atuante na defesa de réus políticos durante os anos de chumbo, argumenta que tal atividade era extremamente difícil. “Os riscos eram muito grandes. Quando o Eloar (Guazzelli) solicitou meus serviços, ele me avisou que eu correria perigo. A situação piorou depois da instauração dos Atos Institucionais”, recorda. “O que facilitava nosso trabalho eram as conexões que tínhamos, como eu, que possuía conhecidos na Polícia Federal.” 

Eloar Guazzelli foi Conselheiro Estadual da OAB do Rio Grande do Sul e presidente do Instituto dos Advogados do Estado. Foi um dos advogados que mais defendeu presos políticos durante a ditadura militar, tendo trabalhado, inclusive, na absolvição do Grupo dos Onze, grupo de esquerda liderado por Leonel Brizola em 1963. Todos foram absolvidos. Ana ainda relata que mais de 300 presos políticos passaram pela proteção deles. “O trabalho era muito difícil. Os militares não tinham a quem temer, estavam protegidos pela ditadura. Muitos dos réus foram torturados sem mesmo serem processados.” 

Os relatos supracitados foram proferidos durante audiência pública da Comissão Estadual da Verdade, realizada no auditório Guilherme Schultz Filho. Apesar de parecerem sucintos e, de certa forma, objetivos, foi com emoção e hesitação que os advogados contaram lembranças de um dos períodos mais trágicos já vivenciados pelo Brasil. Os esforços deles, embora prejudicados pela inexistência de uma justiça clara e aplicável a todos os cidadãos, foram essenciais para a proteção de pessoas que, caso não contassem com o apoio desses profissionais do Direito, figurariam entre as vítimas do regime militar. A comissão tem como motivação, portanto, a permanência do horror, ao qual os brasileiros foram submetidos, nas mentes de cada um, se valendo de histórias dolorosas contadas por quem as vivenciou. Em suma, a intenção é lembrar para jamais repetir. 

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