Corrigir texto

Se você encontrou algum erro nesta notícia, por favor preencha o formulário abaixo e clique em enviar. Este formulário destina-se somente à comunicação de erros.

Entrevista especial

- Publicada em 23 de Novembro de 2009 às 00:00

Racismo no País ainda é forte, avalia líder da causa negra


João Mattos/JC
Jornal do Comércio
O presidente do Movimento Quilombista Contemporâneo, Waldemar “Pernambuco” de Moura Lima, avalia que o racismo no Rio Grande do Sul e no Brasil ainda é forte. Apesar disso, aponta que a situação já melhorou bastante em todos os setores, inclusive no ensino escolar e na revisão da história brasileira.
O presidente do Movimento Quilombista Contemporâneo, Waldemar “Pernambuco” de Moura Lima, avalia que o racismo no Rio Grande do Sul e no Brasil ainda é forte. Apesar disso, aponta que a situação já melhorou bastante em todos os setores, inclusive no ensino escolar e na revisão da história brasileira.
Para vencer as barreiras que ainda persistem, Pernambuco aposta na luta contínua e no ativismo. Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, revela que também existe uma articulação na política para que representantes da causa negra cheguem ao poder nas eleições de 2010. E afirma que o Carnaval de Porto Alegre foi transferido do Centro da cidade para o Porto Seco por preconceito.
Jornal do Comércio - O racismo ainda existe no Rio Grande do Sul e no Brasil?
Waldemar “Pernambuco” Moura Lima - Sim, e com muita força. Não podemos nos enganar. O racismo é cultural, está implícito nas relações sociais. As crianças já nascem com essa ideia incutida, de superioridade das outras etnias. O racismo é consequência da nossa história - fomos escravizados em todo o espaço. E dizer que no Brasil o racismo é mais suave não é verdade.
JC - Existe local mais racista ou menos racista?
Pernambuco - Não. Em qualquer parte do Brasil a que você vá, o racismo é explícito e é o mesmo.
JC - Como começou o seu ativismo pela causa negra?
Pernambuco - Ao perceber a desvalorização da cultura e religião negras, busquei mais informações daquilo que empiricamente fui sentindo no dia-a-dia. Minha descoberta se dá através de Abdias do Nascimento, um ícone da nossa luta - paulista, está vivo ainda, tem 90 e poucos anos -, intelectualmente uma referência internacional e que não tem visibilidade. Aqui nós tivemos o historiador gaúcho Décio Freitas, um homem que se dedicou a fazer pesquisas sérias. Décio fez um trabalho excelente sobre os quilombos. Então, comecei a ver que a história do Brasil que está contada é uma falácia, é a história da manutenção dos poderosos no poder.
JC - E sua ligação aos movimentos negros?
Pernambuco - A partir daí, começamos a aprofundar os estudos sobre os quilombos palmarinos. E chegamos à conclusão de que a sociedade mais plural, a sociedade mais aberta, mais socialista que o Brasil já teve foram exatamente os quilombos palmarinos.
JC - O senhor se refere ao Quilombo dos Palmares?
Pernambuco - Não era bem “um” quilombo, era uma república de quilombos. Por isso chamo de “quilombos palmarinos”. E esses quilombos nos orientam para uma sociedade harmônica, justa, igualitária, onde não haja a exclusão das pessoas e exista respeito às diferenças. Uma sociedade fraterna, que é o sonho de todos nós. Começamos a defender essa ideia e formamos um grupo chamado Movimento Quilombista Contemporâneo.
JC - Como estão as atividades?
Pernambuco - Sempre nos reunimos e agora estamos com um trabalho interessante: chegamos à conclusão de que precisamos ter uma organização que proponha buscar o poder para obter as mudanças. Não se trata de eleger candidatos negros (nas eleições de 2010), mas candidatos da causa negra. Mas não gostaríamos que ficasse só na defesa do negro, queremos a defesa dos excluídos.
JC - Já se lançou a tese de ter um candidato à presidência da República negro, o senador Paulo Paim (PT), a exemplo de Barack Obama nos Estados Unidos. Mas houve uma preferência pela ministra Dilma Rousseff (PT) no pleito de 2010.
Pernambuco - Posso dizer que o Brasil já está preparado para ter um negro na presidência. Mas agora estamos apostando na eleição para o Senado de Barbosinha (Luiz Francisco Corrêa Barbosa, PTB) e Paim, sintonizados com o movimento negro.
JC - É possível fazer um partido específico para a causa?
Pernambuco - Seria um equívoco. Já houve tentativas, mas na política não se pode ter um partido que defenda só o seu interesse. Tem que ser o interesse coletivo.
JC - E o trabalho nas escolas, como está?
Pernambuco - Estamos com um trabalho muito sério a partir da Lei 10.639, de 2003 (que define a obrigatoridade do ensino da história e cultura dos afrodescendentes), que aliás o governo Lula instituiu a partir da pressão do movimento, das organizações civis que exigiram ações políticas para essa temática. Tenho um trabalho chamado Contando a Verdade e Cantando a História, através do grupo cultural Ponto Z. É uma aula musicada e depois há uma oficina com os professores.
JC - Como funciona?
Pernambuco - O projeto prevê 40 horas com educadores. Distribuímos material didático para eles fazerem as leituras e depois trabalhamos com eles. Iniciamos com os diretores das escolas, depois passamos aos professores e fazemos um acompanhamento para ver como isso está sendo desenvolvido com os alunos.
JC - Há uma queixa de que os heróis negros não são reconhecidos pela história oficial. Como o movimento atua nesta questão?
Pernambuco - Temos ações feitas aqui no Rio Grande do Sul que deram resultados nacionalmente, como a data do 20 de Novembro (dia da morte de Zumbi dos Palmares) oficializada como realmente libertária, constituída através do falecido companheiro Oliveira Silveira, que lutou com o seu grupo, Tição. Eles apontam o 20 de Novembro e não o 13 de maio.
JC - Da Abolição da Escravatura...
Pernambuco - Há um aspecto de concessão na Lei Áurea, da princesa Isabel. Na realidade, o que colocamos é que nosso dia de referência de luta libertária é 20 de Novembro.
JC - Qual é a importância de ressaltar essa data hoje?
Pernambuco - Permite uma reflexão no histórico do nosso passado. E é uma data que ufaniza, dá ao povo negro esse valor de autoestima, de saber que nossos antepassados não foram escravos como está dito nos livros didáticos. Eles não nasceram com essa pecha da escravidão, foram escravizados, traídos, violentados desde a vinda da África para cá. Isso é importante.
JC - E o episódio da penúltima batalha da Revolução Farroupilha (14/11/1844), a batalha de Porongos em que soldados negros foram mortos?
Pernambuco - Isso é uma grande traição. A primeira vez que tomei conhecimento desse assunto foi através do professor Guarani, negro já falecido, era militante e historiador. Ele fez um pequeno trabalho e aponta a traição aos lanceiros negros por David Canabarro e Duque de Caxias.
JC - Durante a guerra?
Pernambuco - Os fazendeiros daqui não estavam satisfeitos com a situação do charque e criou-se um choque entre a força imperial e os farrapos. Foram dez anos de luta. E havia rebeldia em várias províncias do Brasil nessa época. Queriam por fim a essa rebelião de dez anos e o fizeram com o “pacificador” Duque de Caxias, então Barão de Caxias. E para fazer a paz, ele negociou economicamente com Canabarro e alguns outros chefes da Revolução Farroupilha. Acertaram isso e traíram os negros.
JC - Como?
Pernambuco - Na noite de Porongos, desarmaram o contingente de lanceiros negros e fizeram um ataque frontal, para matar. Qual desculpa que Canabarro usou para desarmar os negros? Disse que havia um movimento de revolta e precisava desarmar os negros. Na realidade, os negros mais ou menos estavam prevendo que  estavam sendo traídos, aquele zum-zum-zum das tavernas.
JC - E a questão de o País ser escravocrata na época?
Pernambuco - Seria impossível ter uma província onde os negros eram libertos e no resto do País todos os negros escravos. Não tinha como. Seria um problema. Em segundo lugar, o negro liberto vai trabalhar onde? De alguma forma, precisava ter essa paz. E fizeram isso, desarmaram esse contingente, atacaram, chacinaram, assassinaram os negros e, dois meses depois, assinaram um tratado de paz, banhado em sangue dos negros. E a promessa de liberdade não foi cumprida. Os negros não tinham nada que entrar na guerra.
JC - Como está o projeto de monumento aos lanceiros negros em Porongos, município de Pinheiro Machado?
Pernambuco - No início dos anos 2000, na Semana da Consciência Negra, Barbosinha propôs o monumento aos lanceiros negros. Não com verba de governo, a ideia era que cada negro consciente depositasse R$ 1,00 no banco e com aquele dinheiro construíssemos o monumento. E iríamos anualmente até Porongos para construí-lo. Iríamos fazer um marco e gradativamente colocando uma pedra, depois outra. Fazer um marco da história. Aquele espaço é sagrado, tem sangue na terra. Dizemos que a revolta brota da terra, vem do chão.
JC - A ideia era inaugurar em 2004, nos 160 anos do episódio. Por que não foi adiante a proposta?
Pernambuco - A prefeitura de Pinheiro Machado cedeu a área, que está lá, foi tombada pelo patrimônio histórico, teve concurso público de arquitetura do IAB-RS (Instituto dos Arquitetos do Brasil)... Mas surgiram problemas burocráticos que acontecem quando se entra no formalismo, tem que fazer as tomadas de preços etc.
JC - De qualquer maneira, houve avanços nessa revisão da importância do papel do negro?
Pernambuco - Esse é um processo que não retroage, tende cada vez mais a uma ebulição. Negros que foram para a universidade estão se voltando para as suas bases, levando informações. São intelectuais comprometidos com a luta. Graças a Deus, porque alguns chegavam à universidade e mudavam. Hoje estão descobrindo que não adianta ser um intelectual negro, ter diploma, porque continua negro. A exclusão pega do mesmo jeito, independentemente do status social elevado, a sociedade exclui. E exclui pela cor da pele, pelo cabelo engruvinhado, pelo nariz achatado, pelos lábios grossos...
JC - Como o senhor avalia as cotas nas universidades públicas?
Pernambuco - São um paliativo, não resolvem o problema, mas são extremamente necessárias. Não podemos criar normas de igualdade para os desiguais. Não dá para colocar no mesmo patamar aquele que recebe todas as informações, faz visitas ao exterior e tem professores particulares com outro que não tem essas condições. Coloca no mesmo patamar e diz que isso é democracia? Não é democracia, isso é usar a justiça da maneira mais injusta, é excluir. Então, é fundamental que se tenha cotas, embora saibamos que não é a solução. Vai ajudar.
JC - O senhor falou de preconceito contra atividades culturais e religiosas. Como avalia a ida do Carnaval de Porto Alegre do Centro para o Porto Seco?
Pernambuco - Tenho certeza absoluta de que foi por preconceito. A exclusão do espaço central, geograficamente mais rico, valioso, a retirada foi estrategicamente para desconstituir, tirar do espaço mais privilegiado a cultura negra.
JC - Mas houve a construção do sambódromo, a pista de eventos.
Pernambuco - O racismo nesse País é muito hipócrita, velado. Alguns intelectuais, inclusive pessoas ditas comprometidas com a luta do negro, disseram que não seria um sambódromo, seria um espaço de eventos culturais onde aconteceriam as grandes manifestações de cultura. Na realidade, o 20 de Setembro e o 7 de Setembro não foram para lá e nem irão. No discurso, era para ir. A hipocrisia da sociedade, de alguns intelectuais, é exatamente essa. Eles colocam um véu e na realidade o objetivo é outro. Mas isso não é coisa nova. A história do Brasil está recheada de leis e normas ditas que viriam a beneficiar a comunidade negra e que na realidade são postas exatamente para dar sustentação à exclusão.
JC - O Rio Grande é exceção?
Pernambuco - Não, segue o Brasil.
JC - E o reconhecimento do negro na sociedade gaúcha?
Pernambuco - Houve alguns crescimentos. Sou militante há 48 anos, observo que os avanços são muitos lentos. Quando se começa a observar as ações que foram feitas para desconstituir os valores de uma outra etnia, a gente começa a ver que o problema não é do negro, é da nossa brasilidade, dessa nossa miscigenação. Na essência, a nossa luta é de humanidade, para que o ser humano seja respeitado.
JC - O que precisa ser feito para se chegar a isso?
Pernambuco - Isso é uma utopia que deve ser buscada. É uma tomada de consciência de humanidade, um processo lento, gradual, que parte da premissa de que você se descobra como ser humano para descobrir o valor do outro ser humano. Essa é uma sociedade hipócrita, onde você é visto por aquilo que tem e não pelo que você é. Mas estamos na luta.
JC - Como o senhor está avaliando o orgulho negro?
Pernambuco - O negro que tem consciência da sua negritude anda de cabeça erguida, olha nos olhos de qualquer um e sabe o quanto esse País nos deve. E se sente mais brasileiro, comprometido com a mudança que virá na sociedade. Não tenho a menor dúvida, é uma questão de tempo.

Perfil

Waldemar Moura Lima, o Pernambuco, tem 74 anos. É conterrâneo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva - natural de Garanhuns (PE). Veio para Porto Alegre em 1948, aos 13 anos. Começou a tomar conhecimento da questão do negro através do convívio com a turma do Carnaval do Areal da Baronesa. Percebeu uma desconsideração com a cultura negra, estudou o tema e iniciou seu ativismo. Depois de se aprofundar sobre o Quilombo dos Palmares e de questionar a história oficial brasileira, fundou o Movimento Quilombista Contemporâneo, do qual é presidente até hoje.
Paralelamente, exerceu diversas profissões - vendedor de livros, músico e professor de História e Artes - e lecionou por muitos anos na rede pública estadual e em diversos municípios. Está aposentado, mas organiza oficinas para professores através do Grupo Cultural ponto Z (de Zumbi dos Palmares). É fundador do Teatro de Arena, da Banca de Cá e da Rua do Perdão, espaço para o Carnaval de rua que acontece no bairro Cidade Baixa.
Foi filiado ao PDT, na época de Leonel Brizola, depois migrou para o PSB até passar para o PPS - sempre buscando defender a causa do negro. É assessor parlamentar, há dois anos, do deputado estadual Raul Carrion (PCdoB), um dos fundadores da Frente Parlamentar Quilombola.
Conteúdo Publicitário
Leia também
Comentários CORRIGIR TEXTO