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30 Anos da Constituição

- Publicada em 20 de Março de 2018 às 14:53

Constituição Cidadã: as regras para o Brasil do futuro

Ulysses Guimarães afirmou que 'o Brasil precisa de uma Constituição em que o povo seja o fundador, por votação direta, do governo e da lei'

Ulysses Guimarães afirmou que 'o Brasil precisa de uma Constituição em que o povo seja o fundador, por votação direta, do governo e da lei'


AG/ARQUIVO/JC
Uma criança catando comida em um lixão de uma das grandes metrópoles seria a imagem perfeita para descrever o paradoxo entre o que o Brasil queria para o seu povo há 30 anos - com a promulgação da Constituição Federal de 1988, chamada de Constituição Cidadã - e como está esse povo hoje. Vigente em um dos países mais desiguais do mundo, a Carta Magna brasileira, elaborada no período subsequente aos 21 anos de ditadura militar, é uma das mais avançadas no que diz respeito a garantias sociais e humanitárias. Embora pareça incoerente, considerando o contexto em que a sociedade se insere hoje, cercada de violência e de corrupção, a Constituição Federal de 1988, elaborada por 559 parlamentares (487 deputados federais e 72 senadores) que compunham a Assembleia Constituinte, vinha apontar um novo caminho para o Brasil, distante do autoritarismo e das ideias retrógradas que assombraram o País por mais de duas décadas.
Uma criança catando comida em um lixão de uma das grandes metrópoles seria a imagem perfeita para descrever o paradoxo entre o que o Brasil queria para o seu povo há 30 anos - com a promulgação da Constituição Federal de 1988, chamada de Constituição Cidadã - e como está esse povo hoje. Vigente em um dos países mais desiguais do mundo, a Carta Magna brasileira, elaborada no período subsequente aos 21 anos de ditadura militar, é uma das mais avançadas no que diz respeito a garantias sociais e humanitárias. Embora pareça incoerente, considerando o contexto em que a sociedade se insere hoje, cercada de violência e de corrupção, a Constituição Federal de 1988, elaborada por 559 parlamentares (487 deputados federais e 72 senadores) que compunham a Assembleia Constituinte, vinha apontar um novo caminho para o Brasil, distante do autoritarismo e das ideias retrógradas que assombraram o País por mais de duas décadas.
A elaboração do texto, que possui 250 artigos e 114 disposições constitucionais transitórias, se deu em um momento em que movimentos sociais e progressistas clamavam por direitos humanos. Não só havia uma preocupação latente com a qualidade de vida da população, mas também o desenvolvimento social e a distribuição de renda estavam presentes na pauta dos parlamentares que participaram da Assembleia Constituinte, eleita 18 meses após o fim oficial do regime militar. Presidente da Constituinte, o líder do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), Ulysses Guimarães, chegou a afirmar que "o Brasil precisa de uma Constituição em que o povo seja o fundador, por votação direta, do governo e da lei".
Embora o entendimento de que o Brasil precisava se livrar do "entulho autoritário", ou seja, de leis que ainda vinham do regime anterior, o clima entre os parlamentares não era tão harmonioso. A eleição de Tancredo Neves pelo Colégio Eleitoral como primeiro presidente pós-ditadura levou em consideração que o nome era confiável aos olhos do regime militar. "Tratava-se de uma oposição confiável. Para conseguir a chapa e a vitória, e também para que os militares aceitassem a transição, colocou-se, na chapa, o (José) Sarney, presidente do Partido Democrático Social (PDS, a antiga Arena). Quando Sarney tomou posse, o general (João Batista) Figueiredo não foi passar a faixa, pois considerava Sarney um traidor", relembra o doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) Benedito Tadeu César.
O processo de ruptura que acabou com o regime militar, vigente de 1964 a 1985 no País, foi negociado. Com a pressão popular exigindo uma eleição direta, a antiga Arena, que apoiava a ditadura, lançou Paulo Maluf como candidato à sucessão do general João Batista Figueiredo, o último presidente do regime autoritário. Já o MDB apresentou o nome de Tancredo Neves, com apoio da oposição, e que veio, por fim, a ganhar a disputa no Colégio Eleitoral, com 480 votos a 180. A Tancredo, caberia a consolidação da transição democrática, e a vitória do candidato foi resultado de um acordo entre o MDB e políticos da Frente Liberal, uma dissidência do PDS que, mais tarde, daria origem ao PFL, o atual Democratas. Esse acordo, chamado de Aliança Democrática, garantiria o apoio da Frente Liberal ao candidato da oposição e manteria, ao mesmo tempo, a transição democrática sob controle, evitando que ideias com viés esquerdista ganhassem força.
Ainda assim, a ascensão dos movimentos sociais foi mais forte e, mesmo que não tenha se conseguido a formação de uma Constituinte exclusiva e favorável às garantias sociais, a pressão popular se fazia perceptível, o suficiente para fazer com que os parlamentares correspondessem às expectativas da população. "Ninguém aceitou a versão do Brasil que a ditadura criou, com seus delitos, como o ataque ao Riocentro (em 1981) ou o assassinato de Vladimir Herzog (em 1975). Por mais que a ditadura tenha salvado as aparências, a sociedade não engoliu aquilo, e queria direitos humanos, que se tornaram a grande marca da Constituinte", explica o historiador Francisco Marshall, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP).
O mais surpreendente é que, apesar de haver uma pressão popular, não existiram grandes movimentos de rua, como os vistos recentemente no Brasil. Havia uma vontade de mudança intrínseca aos próprios parlamentares. Cada frase que culminou no texto completo da Constituição Federal era redentora - havia uma crença real de que aquelas decisões mudariam a qualidade social do Brasil. "E, de fato, (o texto constitucional) pode - ou poderia -, permite que isso ocorra. Falamos de um país onde existem milhões de miseráveis. Houve uma sensibilidade. Havia um sentimento, naquela época, de que as iniquidades poderiam ser enfrentadas, decorrente da maturidade cultural dos legisladores", avalia Marshall.

CF brasileira é uma das mais avançadas do mundo

Para Mashall, criação do SUS foi um dos desafios criados pela CF

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MARCO QUINTANA/JC
A Constituição Cidadã de 1988 trouxe inovações que não são comuns nos textos de outras nações. O caráter trino, que permite que União, estados e municípios tenham o mesmo status, sem subordinação, só é visto, também, na Alemanha, embora com adaptações. O texto também avançou na descentralização, tanto administrativa quanto fiscal e tributária, devido a um entendimento de que descentralizar era o mesmo que avançar democraticamente.
O professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) Benedito Tadeu César também define a "criação de quatro poderes" como um legado do texto de 1988, embora não o considere positivo. "No afã de dar instrumentos para criar mais defesas para a sociedade, criou-se um monstrengo", opina, referindo-se à autonomia concedida ao Poder Judiciário e, especialmente, ao Ministério Público. "Em nenhuma parte do mundo há um Ministério Público que não é subordinado a nenhum poder. Como todos os outros poderes, ele precisa ser fiscalizado, isso é antidemocrático", comenta.
Esse entendimento, no entanto, não é unânime. Professor de Direito da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro (FGV-Rio), Ivar Hartmann explica que somente um Judiciário independente seria capaz de fiscalizar a atuação do Estado na garantia e no cumprimento de direitos impostos pela Constituição Federal (CF). "Há uma série de regras criando um sistema para garantir que esses direitos sejam efetivamente respeitados pelo Estado. É preciso que haja independência de algumas instituições públicas em relação ao Executivo e ao Legislativo", argumenta.
Outro ineditismo da Constituição Cidadã foi a criação e a inclusão do conceito de seguridade social, que abrange saúde, Previdência Social e assistência social. No caput do artigo 194, fica estabelecido que a seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade a fim de assegurar os direitos relacionados àquelas áreas.
Essa medida, inclusive, provocou desafios nos primeiros anos de vigência da CF, uma vez que tais garantias previam uma oneração da sociedade por meio do Estado. "Realizar o Sistema Único de Saúde (SUS) e compatibilizá-lo com a Previdência é um grande desafio de planejamento e gestão", pondera o professor da Ufrgs Francisco Marshall.
Embora a seguridade social tenha sido o principal campo de avanço, sérios vícios econômicos, como a inconsistência previdenciária do setor público, acabaram onerando o sistema - Marshall considera que as aposentadorias do setor público deveriam ser custeadas por um fundo previdenciário, que seria composto pela contribuição mensal do servidor e por uma contrapartida do governo. "Essa é uma forte crítica à Constituição brasileira. Isso ficou mal resolvido e onerou a previdência pública", lamenta o historiador.

Constituição Cidadã: viável ou utópica?

Assim que a Constituição Federal foi promulgada, no entanto, emendas constitucionais passaram a ser votadas para que o texto sofresse algumas alterações. Algumas propostas das disposições constitucionais transitórias, que receberam prazos para serem aplicadas, jamais saíram do papel.
Desde aquela época, justifica-se o porquê de o Brasil não ter avançado, na prática, tanto quanto o texto da Constituição propõe. "O enfrentamento que ela teve com a realidade põe em xeque o que digo. Talvez ela seja utópica, mas não pelo conteúdo dela. Do ponto de vista estratégico, de planejamento, é completamente factível e viável", pondera o historiador Francisco Marshall.
Levando-se em consideração que as regras do jogo estavam definidas e acessíveis a qualquer pessoa, há de se pensar que, caso todos os atores políticos e as instituições envolvidas no cumprimento das leis, incluindo a população, tivessem respeitado os papéis constitucionais que lhes foram atribuídos, sem extrapolar limites, o Brasil talvez não fosse, hoje, um país com 60 mil homicídios por ano e índices assustadores de desigualdade social.

Críticas vão da extensão a responsabilidades do Estado

Extensão do texto se justifica no contexto brasileiro, diz César

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CLAITON DORNELLES /JC
A Carta Magna de 1988, embora inovadora, não foi recebida com unanimidade. Há quem a compare com a Constituição dos Estados Unidos, composta por sete artigos e 27 emendas, defendendo que a lei suprema do País deveria ser mais curta. Outros consideram que o texto de 1988 confere muitas responsabilidades ao Estado, o que acabaria por tornar o País ingovernável. "São tradições culturais e jurídicas bem diferentes", comenta o professor de Ciência Política da Ufrgs Benedito Tadeu César. "Aqui, se tudo não estiver bem regulamentado, com papel e carimbo, não tem validade. Precisa ser uma Constituição detalhada, e isso está ligado ao embate de qual tamanho deve ter o Estado. Há essa crítica porque existem forças políticas com concepções diferentes", pondera.
Cada Constituição Federal possui peculiaridades. A do México, de 1912, por exemplo, é mais avançada que a brasileira no que diz respeito às populações indígenas. Em comparação a outras constituições, a brasileira se destaca principalmente na garantia aos direitos sociais e na definição de que eles são, sim, obrigatórios. No entanto, em alguns aspectos, como o detalhamento do funcionamento de instituições ou a especificação de regras tributárias, se mostrou uma opção pouco eficiente, no entendimento do professor de Direito da FGV-Rio, Ivar Hartmann.
O Partido dos Trabalhadores (PT), por exemplo, não assinou o texto da Constituição, considerando que ela ainda poderia avançar no sentido de oferta de direitos e garantias ao cidadão. Membros da União Democrática Ruralista também não ficaram satisfeitos com a inclusão de direitos ao trabalhador do campo e garantias reformistas. "Não era e nunca foi unanimidade. E, hoje, continua precária em alguns aspectos, falta regulamentação, que faz com que algumas garantias não sejam válidas rigorosamente. Outras, para que sejam de fato viabilizadas, precisariam de investimentos. Ou seja, ela é cidadã, mas também é manca", opina Hermílio Pereira dos Santos Filho, professor de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs).
Na introdução do livro "Direito Constitucional Brasileiro" (Revista dos Tribunais, 861 páginas, preço sugerido R$ 151,45), de Nelson Nery Jr. e Georges Abboud, os autores afirmam que, embora o Brasil não seja comparável à Inglaterra, aos Estados Unidos ou à Alemanha, "possui um texto constitucional mais rico e generoso na concessão de direitos e garantias ao cidadão do que os três países". Ambos lamentam, no entanto, que, mesmo com um texto generoso, ainda não foi possível concretizar os requisitos básicos de uma democracia, como o "respeito aos direitos fundamentais e a consolidação da separação dos Poderes".