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agronegócios

- Publicada em 02 de Abril de 2018 às 08:13

Panc: as pequenas notáveis

Otimista, biólogo Kinupp acredita que em até cinco anos haverá um grande crescimento na demanda por espécies

Otimista, biólogo Kinupp acredita que em até cinco anos haverá um grande crescimento na demanda por espécies


/VALDELY KINUPP/ARQUIVO PESSOAL/DIVULGAÇÃO/JC
Há pouco tempo, um acrônimo simples, simpático e de certa forma revolucionário ganhou notoriedade, principalmente entre quem se preocupa em ter uma alimentação saudável, fugindo da mesmice das frutas e verduras mais conhecidas, e com o menor impacto ambiental possível. As Panc (Plantas Alimentícias Não Convencionais) são uma nova categoria de produtos que surge de forma espontânea em todas as regiões brasileiras e que deixou de ser consumida por falta de costume, conhecimento e, é claro, pela maior valorização dos itens exóticos desde a colonização do País e pela produção de commodities em sistema de monocultura.
Há pouco tempo, um acrônimo simples, simpático e de certa forma revolucionário ganhou notoriedade, principalmente entre quem se preocupa em ter uma alimentação saudável, fugindo da mesmice das frutas e verduras mais conhecidas, e com o menor impacto ambiental possível. As Panc (Plantas Alimentícias Não Convencionais) são uma nova categoria de produtos que surge de forma espontânea em todas as regiões brasileiras e que deixou de ser consumida por falta de costume, conhecimento e, é claro, pela maior valorização dos itens exóticos desde a colonização do País e pela produção de commodities em sistema de monocultura.
Atualmente, as Panc vêm (re)conquistando consumidores nas feiras e restaurantes, e carregam consigo uma filosofia que vai muito além de nutrir o corpo. O resgate dessas frutas, verduras, ervas e flores já conferiu a elas o status de "alimentos do futuro" e deu novo gás à busca por soberania alimentar no Brasil e ao resgate dos saberes e fazeres originais do País. São plantas com nomes curiosos e, por vezes, engraçados como: ora-pro-nóbis, capuchinha, beldroega, urtiga, dente de leão, lírio do brejo, peixinho, maria gorda e língua de vaca entre outros.
"O Brasil tem segurança alimentar, e o marco disso foi ter saído do mapa da fome. Porém não temos soberania. Quase tudo o que comemos vem da Europa e da Ásia; e todo recurso genético do que plantamos vem de outros países", explica o biólogo Valdely Kinupp, a maior autoridade no assunto. "Ao valorizar espécies nativas, nós podemos causar uma revolução gastronômica", indica.
"Há mais de 10 mil espécies vegetais passíveis de algum uso alimentício, mas nossa alimentação é toda baseada em mais ou menos 40 espécies", complementa a estudante de Biologia Fran Spohr, criadora do projeto Pancaminhadas, em que percorre zonas urbanas mostrando as plantas alimentícias não convencionais que brotam espontaneamente nas calçadas, praças e terrenos baldios.
Kinupp criou o acrônimo Panc e é autor, ao lado do também pesquisador Harri Lorenzi, de uma espécie de "bíblia" sobre esses alimentos, o livro Plantas Alimentícias Não Convencionais (Panc) no Brasil: guia de identificação, aspectos nutricionais e receitas ilustradas. O sucesso da publicação surpreendeu até mesmo o autor e já soma mais de 35 mil exemplares vendidos. A obra é resultado da tese de doutorado realizado na Ufrgs em 2007, em que foram estudadas cerca de 1,5 mil plantas.
De 10 anos para cá, Kinupp admite que "estamos vivendo um período áureo no Brasil, de valorização da biodiversidade brasileira, com usos múltiplos, mas principalmente o alimentício". "Porém tudo está muito na retórica", ressalta o especialista, alertando para o fato de que pouca gente consome em sua casa as Panc, e o número de terrenos ociosos e de terras sem produção é um entrave para que essas plantas entrem na dieta dos brasileiros.
"A própria Embrapa estuda predominantemente as commodities internacionais - que são a soja, disparadamente, o trigo, o arroz e o milho. A mandioca e o amendoim, plantas brasileiras, estão praticamente esquecidas, e a produção está diminuindo consideravelmente", alerta Kinupp. Por outro lado, a gastronomia e a nutrição estão totalmente voltadas para isso.

Restaurantes apostam em uma nova relação com a comida

Camila, Daniela e Vanessa vendem a produção dos Bellé na Pitanga Bistrô

Camila, Daniela e Vanessa vendem a produção dos Bellé na Pitanga Bistrô


CLAITON DORNELLES/JC
Um dos restaurantes que utilizam as Panc colhidas na propriedade da família Bellé é o Pitanga Bistrô, na Zona Sul de Porto Alegre. Resultado da aproximação e paixão de Camila Jacoby Rodrigues, Daniela Grandi e Vanessa Modelski com as Panc ainda na faculdade de Biologia, o lugar oferece um cardápio vegano com a introdução das Panc de terça-feira a domingo, nos almoços e à tarde.
O negócio foi criado em outubro do ano passado, mas o envolvimento com a culinária viva e inclusiva começou antes. Camila conta que o contato com as Panc através de professores ativistas ambientais e dos produtores da família Bellé estimulou as jovens a cozinharem ainda na época da faculdade e a venderem para os colegas e em feiras. Em pouco tempo, elas passaram a receber pessoas interessadas em experimentar seus pratos na casa em que moravam, que contava com um quintal espaçoso e cheio de Panc, em um sistema antirrestaurante - conceito que busca oferecer uma experiência gastronômica diferenciada, desde a criação de um ambiente mais acolhedor e intimista até um cardápio variável.
O Pitanga Bistrô foi um empreendimento e também uma aposta na mudança de cultura de nossa sociedade. Segundo a sócia do bistrô Camila Jacoby Rodrigues, "hoje em dia, usar o termo Panc e apresentar um prato com urtiga, por exemplo, não afasta mais as pessoas. Agora, as pessoas ficam instigadas. Têm grandes chefs brasileiros que falam sobre o tema e aproximam mais gente. A Bela Gil e o Alex Atala são alguns deles".
O restaurante tem um público fidelizado. As três sócias se mantêm apenas com o trabalho no Pitanga Bistrô e apostam no crescimento do espaço. "A maior dificuldade é buscar e trazer público novo", pontua Camila, salientando que, mesmo assim, acredita na maior valorização de comidas com responsabilidade social e ambiental. As sócias realizam também cursos e oficinas, e fazem parcerias com outros negócios engajados na defesa do meio ambiente e voltadas ao lado social para se fortalecer. No local, é possível encontrar sucos da família Bellé, cerveja artesanal da marca Zapata e outros produtos veganos.

Produção mais diversa traz benefícios financeiros aos produtores

Francielle e Aldaci, da família Bellé, que é pioneira no modelo de produção

Francielle e Aldaci, da família Bellé, que é pioneira no modelo de produção


MARCELO G. RIBEIRO/JC
Outro aspecto positivo da produção de Panc é que essas plantas, por serem espécies nativas, combinam perfeitamente com o sistema de produção agroecológico. "Elas podem ser cultivadas de forma orgânica, agroecológica, em sistemas agroflorestais, de agricultura sintrópica", ressalta Valdely Kinupp.
O modelo de produção descrito é exatamente o escolhido pela família Bellé, a principal fornecedora de Panc do Estado. Todos os fins de semana, a família comercializa entre 40 e 50 bandejas de flores comestíveis, como a capuchinha, e aproximadamente 150 hortaliças não convencionais. Os produtores ainda não conseguem se manter apenas da venda de Panc, porém, ainda que as vendas não sejam grandes, manter as Panc entre as mercadorias é importante.
"No verão, a venda de Panc não é tão significativa. Já no inverno, ela faz muita diferença. Ao contrário de outros alimentos, nós sempre conseguimos colher Panc, independentemente da estação; e elas não exigem tanto manejo quanto outros vegetais e frutas", salienta Franciele Bellé. A família comercializa seus produtos na Feira Orgânica do Parque da Redenção, aos sábados; e conta, também, com 10 restaurantes da Capital entre os clientes fixos.
A utilização das plantas comestíveis não convencionais na propriedade familiar, conta Franciele Bellé, ocorre desde que o pai era pequeno. "Naquela época, há cerca de 60 anos, era difícil conseguir comprar comida na região (de Antônio Prado), e os avós e tios plantavam e consumiam as Panc", diz Franciele.
Com o passar do tempo, os filhos foram estudar na cidade e, como acontece em grande parte das propriedades do campo, o trabalho na agricultura ficou a cargo dos mais velhos. Foi quando o pai de Franciele, Rodrigo Bellé, teve de enfrentar problemas de saúde que resolveu adotar um estilo de vida diferente e entrou em contato com a dieta macrobiótica. Ele decidiu, então, levar à cidade natal os ensinamentos dessa filosofia. Abriu uma loja de produtos naturais e voltou a viver na propriedade em que nasceu. "Os irmãos foram convencidos, então, a voltar a produzir sem agrotóxicos. Isso ocorreu no início dos anos 1990, quando o mercado para os produtos orgânicos era muito pequeno", descreve Franciele.
Há 27 anos, a família Bellé trazia pela primeira vez à então Feira da Colmeia, no Parque da Redenção, em Porto Alegre, as Panc - "ainda que, naquela época, elas ainda não tivessem esse nome" -, junto com outros produtos mais comuns e aceitos pelos fregueses. De lá para cá, o consumo aumentou consideravelmente, comemora Franciele.
Agora, os quatro produtores familiares envolvidos com a propriedade buscam ampliar o funcionamento da agroindústria local. A ideia é beneficiar os ingredientes e deixá-los com mais apelo comercial. "Mas o agricultor sozinho não faz nada. É preciso que a academia se aproxime e ajude mais agricultores a produzirem de forma orgânica e agroflorestal, comprometida com o planeta e com a manutenção da vegetação nativa", provoca Franciele.

Gastronomia e botânica se somam em atividades temáticas

Outro local na Capital que inclui Panc em seus cardápios é o Café Mineraux, comandado pela chef Debora Herjean. Na casa antiga onde Debora oferece jantares temáticos, um quintal aos fundos com plantas e árvores desordenadas, que parecem realmente ter nascido completamente sem influência humana, surpreende quem chega ao local. Ali estão alguns dos ingredientes usados pela cozinheira em suas receitas, como serralha, dente de leão, maria gorda, dentre outras.
Além de criar e oferecer pratos com as plantas alimentícias não convencionais, Debora criou o projeto Pancs Que Sustentam, oficinas de sensibilização em que ela, juntamente com o botânico Camilo Pedrollo, realiza caminhada de identificação botânica de plantas na área conhecida como 4º Distrito de Porto Alegre, expõe espécies e dá dicas de receitas.
O interesse dos brasileiros por plantas nativas ainda é modesto, na avaliação de Debora. A chef, que viveu durante 32 anos na França, conta que esse movimento de resgate dos ingredientes e pratos tradicionais já está mais forte na Europa. "Temos uma rede de entusiastas das Panc, ainda pequena, mas bastante fiel. É muito difícil ir contra aquilo que somos formatados para consumir, mas eu tenho esperança que esta não é apenas uma moda", prevê Debora.
Assim como Debora, Fran Spohr é também o que descreve como "Panctusiasta". Ela é criadora de um projeto de caminhadas em diferentes cidades - as Pancaminhadas, em que atenta à importância das brotações espontâneas. Os eventos são sempre gratuitos, divulgados pela internet e realizados em parceria com coletivo autônomos, escolas e universidades. Os encontros já chegaram a mais de uma centena de pessoas de diferentes idades e procedências.
Para Fran, o maior entraves enfrentado por quem defende as Panc é "que todas as grandes corporações não têm interesse nenhum em iniciativas que busquem autonomia e independência de uma determinada rede de consumo".
Porém o sistema de produção de alimentos atual não é lógico. "Envenenamos o ambiente para matar comida, porque precisamos produzir comida. A disseminação do consumo alimentício de um leque maior de plantas nos levaria a uma produção menos exploratória, agroflorestal. Diversificação de culturas promove ecossistemas mais equilibrados e autorregulatórios, com menor incidência de pragas", adverte a ativista.

Fichas estimulam uso e explicam potencial

Foi a partir do contato com os estudos em torno dos benefícios das Panc para a saúde e para o meio ambiente e, principalmente, da demanda dos agricultores de todo o Estado que a Emater-RS/Ascar começou a desenvolver, no ano passado, um projeto de estímulo ao cultivo, consumo e venda desses alimentos. Estão sendo criadas fichas biodiversas, distribuídas em formato digital aos escritórios municipais com as características botânicas, forma de cultivo e manejo, receita e os possíveis usos além do culinário, como propriedades medicinais, forrageiras.
A ideia, explica o engenheiro agrônomo da Emater-RS/Ascar Ari Uriartt, é começar sensibilizando os técnicos e extensionistas ao potencial dessas plantas. Para ele, que tem uma trajetória profissional voltada à produção de orgânicos, o movimento em busca de mais saúde no prato e na lavoura não para de crescer. "Toda a produção que tem por base a produção orgânica, ecológica também está baseada na diversidade. A diversidade oferece proteção aos cultivos, a partir da coexistência de muitas espécies no mesmo ambiente, e o melhoramento do terreno e do solo graças às diferentes profundidades de raízes, diferentes necessidades nutricionais", explica Uriartt, salientando a importância do modelo de produção agroecológico.
Por enquanto, as publicações são apenas para circulação interna na Emater, afirma, idealizador do projeto ao lado da engenheira agrônoma Sonia Regina de Mello Pereira e da nutricionista Leila Ghizzoni. "Mas todas pessoas de áreas rurais e urbanas que tiverem interesse nas Panc podem procurar a Emater", garante Uriartt.