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Entrevista especial

- Publicada em 25 de Fevereiro de 2018 às 21:25

Intervenção é troca por dividendos políticos, afirma Azevedo

'Ferramentas como essa são o caminho mais curto para um regime autoritário', diz Azevedo

'Ferramentas como essa são o caminho mais curto para um regime autoritário', diz Azevedo


LUIZA PRADO/JC
Em vigência há pouco mais de uma semana, a intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro pode representar um risco para a garantia dos direitos individuais, avalia o professor Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, especialista em Análise Social da Violência e Segurança Pública. Ele critica a falta de planejamento, por parte da União, de como serão conduzidas as ações de combate ao rime organizado.
Em vigência há pouco mais de uma semana, a intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro pode representar um risco para a garantia dos direitos individuais, avalia o professor Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, especialista em Análise Social da Violência e Segurança Pública. Ele critica a falta de planejamento, por parte da União, de como serão conduzidas as ações de combate ao rime organizado.
Usando o exemplo das Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs), que representaram uma tentativa de aproximação do poder público com as comunidades mais vulneráveis da periferia carioca, Azevedo sustenta que a efetividade da ação dependeria de um trabalho conjunto da União, do Estado e do município, abrangendo outras áreas, como saúde e geração de emprego e renda.
Nessa entrevista ao Jornal do Comércio, Azevedo afirma que o Rio de Janeiro não é o Estado com maior problema na área de segurança e avalia a medida tomada pelo presidente Michel Temer (PMDB) “mais como uma forma de obter dividendos eleitorais do que propriamente como uma política consequente de enfrentamento da violência”. A consequência, diz o professor, poderá ser um “endurecimento do regime político” no Brasil.
Jornal do Comércio – Qual a efetividade dessa ação de intervenção federal no Rio de Janeiro para resolver uma questão de segurança pública?
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo – O Rio de Janeiro, tanto o Estado quanto a cidade, tem enfrentado problemas na segurança pública há bastante tempo. Desde os anos 1980, no governo (Leonel) Brizola, houve o crescimento de grupos ligados ao tráfico de drogas, o que aumentou muito a capacidade desses grupos se armarem, ocuparem território e, de lá para cá, os diversos governos que foram se sucedendo nunca conseguiram dar uma resposta efetiva para essa situação. Isso até 2008, quando começaram a ser implantadas as UPPs, sob a coordenação do secretário de Segurança José Mariano Beltrame, que foram uma tentativa de ocupação desses territórios pela polícia de forma mais permanente, e isso trouxe resultados. Os dados de 2008 a 2015 mostram uma queda das taxas de homicídio e de criminalidade de maneira geral, então não dá para dizer que o Rio de Janeiro nunca teve uma política bem sucedida. As UPPs tiveram sucesso, só que tinham um limite: a pura e simples presença da polícia não resolve tudo. É preciso que haja outros serviços públicos, como saúde, educação, especialmente geração de emprego e renda nessas comunidades, para que o tráfico seja excluído de uma forma mais permanente, e para que os jovens tenham alternativas de vida que sejam viáveis. E isso não aconteceu. É preciso compreender que o crescimento da violência não é especificamente no Rio de Janeiro - que não está entre os estados mais violentos - mas é uma vitrine pela questão do turismo e por ser a cidade mais conhecida do país em nível internacional. Essa situação de deterioração das políticas de segurança do Rio já vinha acontecendo há algum tempo, dando margem para a intervenção do exército através das GLOs (Garantia da Lei e da Ordem), que é prevista constitucionalmente. A novidade agora é que há uma intervenção federal na área da segurança pública, que não tem caráter militar – retira a competência do governo do Estado e dá ao interventor. Tem se chamado de intervenção militar porque o interventor é um general. Poderia ser um político, um civil...
JC – É adequado usar esse termo (intervenção militar)?
Azevedo – Não é o mais adequado, na minha opinião. É uma intervenção da União no Estado, que não necessariamente deveria ser realizada por pessoas ligadas às forças armadas. Mas esse caráter acabou sendo dado. Até agora não está claro o que se pretende com essa intervenção, mas eu diria que há dois cenários possíveis, um mais positivo e outro - que me parece estar se consolidando - mais negativo. O favorável seria reconhecer que, quando há uma perda de controle do Estado na área da segurança pública, talvez o principal motivo seja a corrupção policial. Ou seja, os órgãos policiais, tanto militar quanto civil, não têm capacidade operacional, porque estão minados por relações promíscuas com o crime organizado. E, já que o governo estadual não consegue atuar e coibir essas práticas ilícitas, chama-se o governo federal. Não parece ser esse o foco. Até agora não se disse nada sobre isso e, pelo contrário, o foco vem sendo, cada vez e de uma forma mais explícita, a ideia de que, para combater a violência no Rio de Janeiro, é preciso que haja uma redução dos direitos e garantias individuais, como a ideia dos chamados mandados de busca e apreensão coletivos, para que, em determinadas áreas, a polícia tenha salvo-conduto para invadir residências sem que haja mandados de busca e apreensão específicos, como a lei prevê. Sabemos que ferramentas como essa são o caminho mais curto para um regime autoritário, em que não há controle por parte da sociedade sobre como agem as forças de segurança. São situações que levam aos abusos e que acabam se voltando contra a população de uma maneira geral, e não contra o crime, porque são muito pouco efetivas para coibir ou erradicar a criminalidade organizada.
JC – Essa ação é necessária, era a única ou a melhor alternativa para tentar resolver o problema do avanço da criminalidade?
Azevedo – Com certeza essa não era a melhor opção, especialmente por esse caminho que vem sendo proposto, de uma flexibilização das garantias legais para a ação das forças policiais e do próprio exército. O que precisaríamos seria o reforço dos órgãos estaduais ligados à segurança pública, das polícias civil e militar, tanto na capacidade investigativa quando de policiamento ostensivo, para retomarem o caminho que foi iniciado em 2008 de ocupação de determinadas áreas, acompanhadas de outros órgãos do poder público que pudessem também ter algum papel na prevenção. Não é isso que está sendo dito e proposto pelo governo federal e pelo interventor. Além disso, não houve nenhuma novidade nas últimas semanas que pudesse levar a essa conclusão de que há uma situação nova e exigiria algum tipo de atuação mais espetacular da União nessa área. Se formos olhar as estatísticas do Rio de Janeiro, não há uma explosão da criminalidade como o discurso do governo federal tem feito crer. O que houve foi, durante o carnaval, cenas filmadas de práticas criminais como arrastões, assaltos, que chamaram muita atenção até pelo caráter midiático que foi dado. Haveria, sim, a possibilidade de parceria entre União, Estado e município, para que outras iniciativas fossem tomadas, muito mais adequadas e muito mais vinculadas a uma ideia de legalidade, de atuação conjunta, com resultados mais efetivos do que uma decisão como essa – até agora não se disse qual é o foco, quais são os objetivos, indicadores que serão utilizados.
JC – O comandante do exército diz querer garantia para agir sem o risco de surgir uma nova comissão da verdade. O quanto isso nos remete a um período de ditadura militar?
Azevedo – O que essa frase denota é a ideia de que a participação do exército nas políticas de segurança só pode ocorrer mediante uma espécie de salvo-conduto preventivo, a partir do qual qualquer ato praticado pelos militares está salvaguardado, é considerado legítimo e portanto não é passível de responsabilização criminal dos seus autores. É isso que se pretende. Isso começou a ser implementado no ano passado, quando se transferiu a competência dos crimes praticados por militares em ação na segurança pública para a Justiça Militar, mudança que já foi denunciada por setores ligados à defesa dos direitos humanos. Agora se pretende ir além e dar aos militares e às próprias polícias uma possibilidade de atuarem de forma a utilizarem a violência letal contra pessoas que estão em situação duvidosa. Isso, na verdade, é uma espécie de legitimação da pena de morte no Brasil, de maneira informal, coisa que já acontece muitas vezes. Mas ainda temos, pelo menos enquanto país está sob a égide de uma Constituição vigente, caminhos legais para coibir essas ações quando são praticadas de forma indevida.
JC – Existe a possibilidade de que ações como essa se estendam para outros estados?
Azevedo – A ação no Rio de Janeiro tem um caráter talvez muito mais espetacular e ligado ao contexto político de um ano eleitoral. Portanto, não podemos desconsiderar a importância dessa intervenção do ponto de vista dos interesses mais imediatos do atual governo. Possivelmente haverá demanda de outros governos para que essa intervenção aconteça. O Exército já está atuando em outros estados naquele mecanismo das GLOs. Se alguns resultados forem obtidos a curto prazo no Rio de Janeiro, no sentido de uma redução, pelo menos do ponto de vista mais midiático, da violência, talvez essa demanda se dissemine para outros estados e tudo isso acabe servindo muito mais como uma forma de obter dividendos eleitorais do que propriamente como uma política consequente de enfrentamento da violência no Brasil a médio e longo prazo.
JC – O Rio Grande do Sul seria um desses Estados?
Azevedo – Me parece que não. O Rio Grande do Sul vive uma situação de crise na segurança pública há algum tempo, no entanto essa crise já teve um ápice no ano de 2016, quando houve a troca na secretaria da segurança e a vinda da Força Nacional. De lá para cá, pelo menos houve melhora em alguns indicadores criminais, o que acaba diminuindo um pouco a tensão e a pressão sobre o governo estadual.
JC – O governo está se aproveitando do ano eleitoral para inserir uma pauta política, como agenda positiva? Que efeito isso poderá ter no cenário eleitoral desse ano?
Azevedo – Não há a menor dúvida de que o tema da Segurança Pública será muito explorado durante os debates eleitorais. Há uma maioria formada na população brasileira seduzida pelo discurso populista de que, para o combate ao crime, a democracia é um problema, e que é preciso flexibilizar regras e garantias para que as forças de segurança possam atuar e ter resultados. Isso é uma grande ilusão, porque, pelo contrário, desde 1988 até hoje o Brasil não conseguiu colocar as suas forças de segurança pública sob a égide de um regulamento constitucional e democrático. Há muitos problemas históricos que têm a ver com toda uma tradição autoritária e inquisitiva do sistema de justiça e segurança que fazem com que as nossas polícias sejam pouco profissionais, extremamente violentas e muito ineficazes para realizarem as suas atribuições, especialmente na investigação criminal. O que estamos vendo com a intervenção vai no sentido do agravamento desse quadro, ou seja, ao invés de enfrentar os problemas, estamos presenciando uma volta ao passado. Diante disso, a situação é bastante difícil, na medida em que há essa demanda social por segurança, um discurso populista que dialoga com essa demanda, que em ano eleitoral tem muita potencialidade para garantir a eleição de candidatos num contexto de crise política de fragilização dos partidos e de reforço de caminhos que não tem nenhuma perspectiva do ponto de vista democrático.
JC – Essa pode ser considerada uma estratégia do governo para desviar o foco da reforma da Previdência, cuja tendência era ser derrotada no Congresso Nacional? É um jogo de interesse?
Azevedo – Sem dúvida. Esse governo tem muita dificuldade de se manter, e vem se mantendo não porque tenha respaldo popular, mas há sim apoio do meio empresarial e de parte da mídia. Esse apoio é dado muito em nome das prometidas reformas – trabalhista e da Previdência – que agradam ao mercado e seriam a promessa de crescimento econômico a partir da sua implementação. Mas sabemos que a situação não é tão simples, a reforma da Previdência teve resistência da própria base do governo. Não podemos esquecer, dentro desse governo há muitos investigados e acusados de crimes, que têm no foro privilegiado sua única possibilidade de evitar uma responsabilização. Para isso, vão lançar mão de todo tipo de recurso, na medida em que têm o poder na mão, para, em ano eleitoral, conseguirem se manter nesses cargos. Isso é grave, e utilizar o Exército como ferramenta para obtenção de dividendos eleitorais é mais grave ainda. Dar ao Exército esse papel de interventor no Brasil, um país que tem uma longa história de intervenções militares, de regimes militares, de tutela das forças armadas sobre a sociedade civil e o sistema político, tudo isso reaviva o receio de que estejamos caminhando para o endurecimento do regime político. É importante que a sociedade brasileira tenha clareza do que isso pode produzir e tanto os cidadãos quanto as instituições possam tomar os devidos cuidados para que possamos barrar esse processo de paulatina degradação da ordem democrática construída com tanta dificuldade a partir de 1988.

Perfil

Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo é natural de Porto Alegre e tem 49 anos. É graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs, 1991), especialista em Análise Social da Violência e Segurança Pública (1996), mestre (1999) e doutor (2003) em Sociologia pela Ufrgs, com estágios de pós-doutorado em Criminologia na Universitat Pompeu Fabra (Espanha, 2009) e na Universidade de Ottawa (Canadá, 2013). Atualmente, é professor titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs), atuando nos programas de pós-graduação em Ciências Criminais e em Ciências Sociais. Pesquisou sobre temas como reformas penais e administração da justiça penal, penas alternativas, políticas públicas de segurança e atendimento a mulheres vítimas de violência. É líder do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal (Gpesc) e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. É pesquisador associado e membro do Comitê Gestor do Instituto Nacional de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (INCT-Ineac).