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30 anos da constituição

- Publicada em 30 de Janeiro de 2018 às 08:31

Em meio a disputas, surge uma nova Carta Magna

Constituição Federal em vigor foi promulgada em outubro de 1988 no Congresso

Constituição Federal em vigor foi promulgada em outubro de 1988 no Congresso


ARQUIVO AGÊNCIA BRASIL/DIVULGAÇÃO/JC
"É para abrir mesmo. E quem quiser que não abra, eu prendo, arrebento. Não tenha dúvidas."
"É para abrir mesmo. E quem quiser que não abra, eu prendo, arrebento. Não tenha dúvidas."
A frase de João Batista Figueiredo, último governante do regime militar, acabou se tornando emblemática no processo de abertura política no Brasil. Mais do que um autoritarismo quase anacrônico em um momento de retomada democrática, a declaração, dita durante uma entrevista em 1978, dá uma boa pista do estado de espírito que guiou a construção de uma nova Constituição: a disposição de atender aos inúmeros anseios da sociedade civil, mas sem questionar ou romper de todo com o regime que, supostamente, deveria ser colocado contra a parede nesse processo.
O Brasil contabiliza, até o momento, sete diferentes constituições em sua história. Ou oito, se levamos em conta a visão de vários especialistas que tratam a emenda constitucional de 1969 - que mudou radicalmente pontos do texto escrito pelos militares dois anos antes - como uma carta à parte. O regime militar, tornado mais severo a partir dessa modificação, já dava sinais de enfraquecimento, pelo menos, desde a metade dos anos 1970, em um processo fortalecido pelas greves de metalúrgicos de 1978 e pela crescente crise após o "milagre econômico", modelo desenvolvimentista fortemente baseado no endividamento externo.
Em 1979, o governo atendeu aos movimentos pela Anistia, dando o primeiro sinal de qual seria sua estratégia diante do colapso: buscar uma série de reformas políticas que trouxessem uma abertura "lenta, gradual e segura", como descreveu o então presidente Ernesto Geisel (1974-1979). Ou seja, uma transição sem revolução, que não criasse riscos reais de responsabilização aos principais atores do regime, tanto pelas violações de Direitos Humanos quanto pelo cenário econômico cada vez mais difícil. A frase bombástica de Figueiredo era sinal claro de que a redemocratização não era simplesmente aceita pelos militares, mas conduzida por eles de forma bastante próxima, como uma maneira de evitar que saísse de controle. 
De acordo com o professor Antônio Sérgio Rocha, do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a proposta hegemônica na comunidade jurídica brasileira de então era a retomada da Carta de 1967, retirando dela os elementos abertamente autoritários, em sua maioria inseridos na emenda de dois anos depois. Ou seja, uma resposta que supostamente traria legalidade ao regime, e que servia bem aos próprios militares.
A partir do livro Assembleia constituinte: a legitimidade recuperada, do jurista Raymundo Faoro, publicado em 1981, uma corrente oposta se fortaleceu, favorável à atuação de um colegiado e um novo texto constitucional. O livro, segundo Rocha, acabou por "munir as forças progressistas de instrumental teórico para combater o projeto do regime de promover uma ampla reforma, ao invés da convocatória de uma Assembleia Nacional Constituinte que restaurasse a legitimidade dos marcos políticos do País". A partir disso, se estabelece o que Rocha descreve como uma disputa "palmo a palmo" entre forças progressistas e correntes conservadoras dentro do regime. 
"As Forças Armadas seguiram com um papel interno muito acentuado no Brasil e acabaram tendo o amparo do futuro texto constitucional", diz Sirlei Gedoz, doutora em História e professora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). "Em países democráticos da Europa, por exemplo, a função primeira dessas instituições é de defesa de fronteiras e ação contra ameaças externas; aqui no Brasil, sempre mantiveram um papel de estabilidade interna. Situações que vemos, hoje, como a tentativa de controle dos movimentos sociais são consequências diretas dessa grande conciliação (no processo da Constituinte)."

Plano Cruzado deu ao novo governo maioria na Constituinte

Líder do Diretas Já, Ulysses Guimarães era favorável a manter Constituinte no Congresso

Líder do Diretas Já, Ulysses Guimarães era favorável a manter Constituinte no Congresso


/ALFONSO ABRAHAM/DIVULGAÇÃO/JC
A eleição de Tancredo Neves, em 1985, primeiro presidente civil desde o golpe de 1964, era sinal claro de que o governo militar chegava ao fim, mas não significava que a influência das Forças Armadas tivesse se encerrado. Afinal, o próprio Tancredo havia confirmado a intenção de convocar uma comissão de especialistas, que elaborariam um anteprojeto constitucional - parte do acordo com os militares para garantir a abertura.
Após a morte do presidente eleito e da posse do vice José Sarney, a formação do conselho foi confirmada, sob comando de Afonso Arinos. O anteprojeto foi publicado no Diário Oficial da União em 1986, mas acabou sendo rejeitado pelo Congresso, em especial pelo futuro presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães. Não fazia sentido, diziam os críticos, aceitar a ajuda de um "conselho de notáveis" em um momento no qual tantas vozes, e tão múltiplas, precisavam ser ouvidas e contempladas.
Responsável por conduzir um processo de extrema importância e sob constante disputa, Sarney apostou no Plano Cruzado como forma de atacar uma grande angústia nacional e, a partir daí, dar legitimidade ao próprio governo. O impacto inicial positivo do plano, explica Sirlei Gedoz, acabou tendo efeito direto sobre o processo constituinte. "Com a queda inicial da inflação, o PMDB atingiu uma grande popularidade. E isso deu ao governo uma grande vitória nas eleições para deputados e senadores de 1986."
Após a reforma política de 1985, a sociedade empolgou-se com a criação de novas agremiações políticas. Nas eleições gerais de 1982, cinco legendas concorreram; para os pleitos municipais ocorridos três anos depois, já eram 29. Principal partido oposicionista ao regime militar e - com a posse de Sarney - condutor de todo o processo de transição, o PMDB teve resultados magros em 1985, mas a melhora econômica reverteu totalmente a situação no ano seguinte.
O partido do governo elegeu 304 parlamentares, mais da metade do total da Assembleia Constituinte, enquanto o aliado PFL conquistou outras 132 cadeiras. Somados, todos os demais partidos tinham apenas 121 lugares. "Conjugado aos números obtidos pelo PFL, a Aliança Democrática (frente política centralizada pelo PMDB) detinha sozinha a maioria absoluta da futura Assembleia", acentua Rocha, da Unifesp.
Não demorou muito, porém, para o Plano Cruzado ruir. "Medidas corretivas, que consolidariam o pacote econômico, não foram tomadas por medo de causar impopularidade", observa a historiadora da Unisinos. O resultado, diz ela, foi uma nova disparada da inflação, logo após o fechamento das urnas. "Lembro do meu pai dizendo 'podiam, pelo menos, deixar que terminassem de contar os votos'", brinca.

Constituinte congressual ajudou a acomodar interesses

Com a recusa dos parlamentares de aceitar diretrizes anteriores à formação da Assembleia, uma segunda disputa de forças ganhou a frente do cenário: a definição de qual seria o formato da bancada responsável pela nova regra institucional.
O jurista e ex-deputado federal pela Arena Célio Borja foi designado por Sarney como assessor presidencial, e tornou-se responsável por elaborar a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 43, que convocaria e tornaria possível a Assembleia Nacional Constituinte. Em 17 de novembro de 1985, foi oficializada a convocação da Assembleia, a se reunir em fevereiro de 1987.
No artigo primeiro do texto, era possível ler: "Os membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal reunir-se-ão unicameralmente em Assembleia Nacional Constituinte livre e soberana no dia 1 de fevereiro de 1987, na sede do Congresso Nacional".
Ou seja, a Assembleia seria congressual, privilegiando os eleitos em 1986 e sem a formação de uma Constituinte exclusiva, como desejavam correntes políticas progressistas e os então ascendentes movimentos sociais.
A aprovação da PEC 43 envolveu uma série de complexas disputas dentro do Congresso, em uma discussão que levou mais de quatro meses. Embora disposto a definir o caráter da Constituinte em um plebiscito, o relator do processo, deputado Flavio Bierrenbach (PMDB-SP), argumentava que o Congresso não era um poder constituinte, e sim constituído - ou seja, que seria necessário um colegiado próprio para elaborar a nova lei. A posição, porém, não prosperou, e a pressão a favor do texto de Célio Borja teve a participação do próprio Ulysses Guimarães, que presidiria futuramente a Constituinte.
Bierrenbach acabou destituído da relatoria pela comissão mista responsável pela PEC, e coube a Valmor Giavarina (PMDB-PR) apresentar um substitutivo, favorável a sediar a Constituinte no Congresso Nacional. O chamado Substitutivo Giavarina, depois convertido na Emenda Constitucional nº 26, atendeu às expectativas das forças conservadoras, e foi mais um capítulo no grande acordo que evitou o confronto direto entre os militares e o ainda frágil governo civil.
"Uma Constituinte congressual era fundamental para garantir a conciliação entre os poderes", aponta Sirlei Gedoz, doutora em História e professora da Unisinos. "Seria muito mais difícil, a partir de uma Constituinte exclusiva, manter as regalias a alguns setores que acabaram sendo preservadas. Sarney foi um grande articulador durante a ditadura, e teve grande papel em garantir essa solução."
A partir do final de dezembro de 1986, a assessoria da Câmara, a pedido de Ulysses Guimarães, passa a elaborar uma minuta para o regimento interno da Assembleia Nacional Constituinte. Nela, estava originalmente prevista a formação de uma comissão constitucional, com 80 parlamentares e um relator geral, que seria responsável direto pela elaboração do anteprojeto. A ideia, porém, não prosperou. Críticos, como Fernando Lyra (PMDB-PE), denunciavam o risco de criar constituintes de primeira e de segunda classe, restringindo as principais discussões a um núcleo privilegiado.
Diante da recusa da maioria dos deputados e senadores, acabou sendo elaborado um formato de oito comissões temáticas, cada uma com três de um total de 24 subcomissões. Definiu-se também uma Comissão de Sistematização, com a tarefa de consolidar todas essas contribuições em um anteprojeto definitivo. Qualquer constituinte poderia apresentar emendas, e era possível também trazer as chamadas emendas populares: qualquer proposta poderia ser apresentada diretamente à Assembleia Constituinte, desde que encampadas por três entidades associativas e com a assinatura de, pelo menos, 30 mil eleitores. Ao todo, 122 emendas populares seriam apresentadas, somando mais de 12 milhões de assinaturas; delas, 83 foram admitidas. O número de emendas parlamentares foi bem maior, chegando ao total de 20.790 modificações.

Ascensão do liberalismo econômico enfraqueceu alicerces da ditadura

Greves no ABC foram encorajadas por desmoralização global do regime militar

Greves no ABC foram encorajadas por desmoralização global do regime militar


AGÊNCIA FOLHAPRESS/JC
Além da busca de uma conciliação entre as forças progressistas e o conservadorismo ligado ao antigo regime militar, a gestação da Assembleia Nacional Constituinte também sentiu os efeitos do cenário político internacional. A partir da eleição do democrata Jimmy Carter como presidente dos Estados Unidos, em 1977, a relação norte-americana com os governos militares da América Latina sofreu uma sensível mudança. Carter autorizou a divulgação do primeiro relatório sobre direitos humanos no Brasil, falando abertamente de tortura a presos políticos.
Isso, segundo o cientista social da Unifesp Antonio Sergio Rocha, abalou a ditadura brasileira no cenário global e encorajou a dissidência interna, tendo influência na eclosão dos movimentos sindicais de protesto, como as greves verificadas no ABC paulista no final dos anos 1970. Além das vitórias eleitorais da oposição, o número crescente de trabalhadores cruzando os braços também impactou fortemente a supremacia das Forças Armadas, trazendo consigo outras organizações, como os movimentos estudantis, e os desdobramentos das pastorais religiosas ligadas à Igreja Católica, como a luta ambientalista e o movimento negro.
Mais tarde, a chegada de Ronald Reagan ao poder nos EUA, em 1982, e a força política da primeira-ministra britânica Margaret Thatcher trazem as teses do novo liberalismo para a linha de frente. Um processo fortalecido pelo fim da União Soviética e pela queda dos regimes comunistas em quase todo o mundo.
A historiadora da Unisinos e o cientista social da Unifesp concordam que esse sopro vindo do cenário internacional motivou um distanciamento entre os militares brasileiros e o empresariado, que passa a desejar de forma crescente uma desestatização da economia. "A relação (entre militares e empresariado no Brasil) era tão próxima que, por muito tempo, Estado e burguesia pareciam ser a mesma coisa. Se, no entanto, desfrutava os benefícios, a burguesia não decidia", aponta Rocha. "Com a liberalização do regime, os empresários percebem a brecha e se lançam ao controle da hegemonia, à busca de comandar as decisões da economia."
Quando o México declara moratória da dívida externa, em 1982, a crise faz com que a concessão de créditos aos regimes militares da América Latina fosse fortemente limitada. "Na percepção pública, firma-se a imagem de que somente sob uma democracia a política econômica readquirirá racionalidade e a indispensável defesa dos interesses nacionais", reforça o cientista social. É nesse ambiente, com a ameaça das revoluções socialistas neutralizada e a perspectiva de maximização de ganhos a partir de novos mercados globais, que os constituintes começam as discussões da nova Carta, no dia 4 de fevereiro de 1987.