Uma estreia surpresa, sem grandes avisos, mas que abriu as primeiras capas dos suplementos de cultura dos jornais da cidade movimentou o Theatro São Pedro, na semana retrasada. Renato Farias, ator gaúcho radicado no Rio de Janeiro, a partir de um conjunto de mais de duas centenas de cartas trocadas entre seus pais, quando namorados e noivos, produziu a dramaturgia de 220 cartas de amor, que ele mesmo interpreta, ao lado de Gaby Haviaras, sua esposa, com direção de Rafael Sieg.
Biografias, correspondências de amor, diários: todo este material sempre suscita interesse e permite um sem número de reflexões mais ou menos produtivas, dependendo do material primário compilado e do modo como ele é transformado. Neste caso, sinteticamente, temos um texto com altos e baixos, mercê talvez de uma dificuldade de Farias, filho e ao mesmo dramaturgo, conseguir distanciar-se do material e de sua relação direta com este material, de modo crítico. Quando o consegue, resulta em excelente texto. Para início de conversa, cortar. O espetáculo tem mais de hora e meia: por mais interessante que seja, precisa ser condensado, cortado. Por quê? Para gerar um foco narrativo com densidade dramática. Assim como está, fica demasiadamente esparramado e perde força.
Segunda questão: pedir que uma terceira pessoa revise o texto para distanciar-se dum certo tom de festinha familiar que às vezes o invade. Há observações e registros magníficos, produto das próprias cartas em si. A pesquisa de imagens da direção, por outro lado, enriquece o espetáculo. Mas ele não pode se tornar um álbum de fotografias de família ou de amigos, como era evidente na noite de estreia, em que praticamente toda a plateia deveria ter algum vínculo mais ou menos direto com os personagens. Se os personagens forem bons (e são, as cartas em si são maravilhosas, criativas, poéticas, cômicas, traduzem à perfeitas as variações de emoção e temperamento dos personagens), eles têm de se tornar interessantes para qualquer pessoa, independentemente de eles terem sido ou não conhecidos, como eu, por exemplo. Jamais soube desses personagens até a noite do espetáculo e, no entanto, adorei a narrativa e uma história (namoro e noivado de quase 10 anos...).
Por outro lado, há que concentrar, dar saltos, sintetizar, objetivar o enredo que em si mesmo, já se apresenta com dramaticidade: dois jovens que se conhecem, namoram, noivam e casam. Aliás, quando o dramaturgo Renato Farias se intromete para comentar e atualizar ou traçar paralelos entre a história em cena e sua própria experiência, ou quando conta como isso ou aquilo aconteceu, com detalhes que não aparecem nas cartas, o espetáculo engrena. Mas depois, cai, e às vezes se arrasta.
Gaby Haviaras vive Maria de Lourdes com garra, comicidade, ironia, naturalidade, sobretudo. Renato Farias, enquanto ator, também é uma excelente presença em cena. O cenário de Gigi Barreto, embora tenha a boa ideia das faixas de tecido dispostas no fundo do palco é prejudicado por sua disposição. As faixas precisariam ficar mais paralelas, e não sobrepostas, porque acaba prejudicando a projeção das imagens, às vezes, quase impossíveis de serem distinguidas. Os figurinos de Tuca Sodré ficaram excelentes, marcando bem as passagens de tempo. A seleção musical, do próprio diretor Rafael Sieg também está bem organizada, provocando reações do público.
Em síntese, 220 cartas de amor é uma excelente ideia, mas que precisa ser aprimorada. Como Porto Alegre e Santa Maria foram as cidades escolhidas para a estreia do espetáculo, que depois deve seguir carreira no Rio de Janeiro, é um bom momento para a equipe revisar o projeto, que pode ser melhorado e terá um excelente resultado.