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Teatro

- Publicada em 18 de Setembro de 2017 às 12:03

Censura, teatro e mais

Cristiano Vieira
A aguardada estreia da espanhola Angélica Liddell no Porto Alegre em Cena, com duas sessões do espetáculo Génesis 6, 6-7 no fim de semana passado, não deixou dúvidas: a montagem foi mesmo a principal atração internacional da grade deste ano, em um resultado no palco que beira o inclassificável - neste caso, um adjetivo positivo.
A aguardada estreia da espanhola Angélica Liddell no Porto Alegre em Cena, com duas sessões do espetáculo Génesis 6, 6-7 no fim de semana passado, não deixou dúvidas: a montagem foi mesmo a principal atração internacional da grade deste ano, em um resultado no palco que beira o inclassificável - neste caso, um adjetivo positivo.
Desde o início, a sensação de incômodo atinge em cheio o espectador - seja devido às imagens cirúrgicas projetadas no telão ou ao surgimento de personagens aparentemente bizarros (falaremos mais deles depois). A vagarosidade das cenas exige um distanciamento psicológico da plateia, para captar o que o espetáculo propõe: uma visão moderna mas pesada de um trecho do Velho Testamento, desvinculada de qualquer linearidade no discurso.
Angélica toca em temas difíceis, que fariam o sonho de protestos de qualquer agenda fundamentalista na atualidade: questionamento religioso, inversão de gêneros, rompimento das relações familiares tradicionais...com isso, surgem, cena após cena, os atores que darão vazão à dramaturgia foram do comum da encenadora: além da própria Angélica, há o homem judeu nu; a criança portando um fuzil AK-47 (um menino de um rosto tão doce quanto sério ao segurar a arma); o homem sem parte de um dos braços, também nu; e Sandra Dani, cuja participação certeira dá ares de familiaridade ao espetáculo.
Mas quem consegue esquecer daquele par de gêmeas, loiras e longilíneas, em um contínuo entra e sai do palco? Trata-se de Sarah e Paola Cabello Schoenmakers. Em um primeiro momento, aparecem grávidas, poderosas, carregando nos ventres o resultado maior de toda relação familiar tradicional: a procriação. Aos poucos, a catarse que elas sofrem no palco desconstrói este paradigma, abrindo espaço para a loucura humana, seus desejos mais obscuros e perigosos.
Em um monólogo de alguns minutos próximo ao encerramento, Angélica destaca no discurso a crueza dos sentimentos, o desprezo pela postura paternalista de uma sociedade ainda amarrada a conceitos primordiais - e questionáveis - ensinados ao ser humano desde que este aprende a se comunicar. É esta a barreira a ser rompida: inserir a diferença, o questionamento, em uma engrenagem social enferrujada pelo fundamentalismo que nada admite.
Inclassificável, mas poético; impactante, mas poderoso; incômodo, mas reflexivo. Quem buscou entretenimento puro saiu frustrado com Génesis 6, 6-7 após uma hora e meia de espetáculo. Lá pelas tantas, alguém deixou escapar na saída do teatro: "não gostei porque não entendi. Teatro tem que ser coerente e fácil".
Ledo engano. O pensamento raso não provoca inflexão, o propósito maior de qualquer atividade artística. Quem quiser andar por esta vida enfileirado feito carneiro indo para o abate, sem qualquer pretensão de modificar paradigmas, nasceu no século errado. O momento atual exige, mais do que nunca, reflexão para questionar o mundo em que vivemos.
O festival termina neste fim de semana, não sem trazer a Porto Alegre aquela que virou a montagem mais polêmica da atualidade: O evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu. Protagonizada pela atriz e travesti Renata Carvalho a partir do texto da escocesa Jo Clifford, a peça foi proibida dez dias antes no interior de São Paulo. Tudo por que "ousa" colocar Jesus Cristo no papel de um transexual - de novo, um paradigma simbólico sendo questionado. As duas sessões, esgotadas, migraram da Pinacoteca Rubem Berta para o Teatro Bruno Kiefer, da CCMQ.
O titular da coluna reassume na próxima semana, ainda a tempo de comentar algumas atividades do Porto Alegre em Cena deste ano. Um ano de sobrevivência nas artes, com o Ministério da Cultura perdido no lodaçal de Brasília e sem qualquer perspectiva de uma política cultural importante.
Também um ano em que a censura tentar calar as vozes contrárias a tudo que foi dito aqui. É 2017, mas bem poderia ser qualquer ano anterior a 1984.
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