Corrigir texto

Se você encontrou algum erro nesta notícia, por favor preencha o formulário abaixo e clique em enviar. Este formulário destina-se somente à comunicação de erros.

Teatro

- Publicada em 03 de Julho de 2017 às 12:58

No meio das crises, o alento que vem do teatro

Nos tempos de Gungunhana, um dos destaques do Festival de Teatro Popular

Nos tempos de Gungunhana, um dos destaques do Festival de Teatro Popular


MARGARETH LEITE/DIVULGAÇÃO/JC
O Festival de Teatro Popular, que a Tribo de Atuadores Ói nóis aqui traveiz realiza anualmente, chegou à quinta edição. Durante uma semana, além do próprio espetáculo da trupe porto-alegrense, assistimos a um conjunto de grupos oriundos de vários países da América Latina. Neste ano, o festival homenageou o dramaturgo, diretor e ator argentino radicado no Equador Aristides Vargas. Foi dele, aliás, o texto do primeiro espetáculo da série, com seu grupo Malayerba, de Quito, com Instrucciones para abrazar al aire. A obra tem referência em fato verídico, ocorrido na Argentina sob a ditadura, na cidade de La Plata, em 1976. Um grupo militar invadiu uma residência particular, sob a alegação de que ali se fabricavam armas clandestinas, e fez desaparecer ao casal e uma filha, ainda adolescente. Na peça, os avós esperam pela neta, enquanto conversam.
O Festival de Teatro Popular, que a Tribo de Atuadores Ói nóis aqui traveiz realiza anualmente, chegou à quinta edição. Durante uma semana, além do próprio espetáculo da trupe porto-alegrense, assistimos a um conjunto de grupos oriundos de vários países da América Latina. Neste ano, o festival homenageou o dramaturgo, diretor e ator argentino radicado no Equador Aristides Vargas. Foi dele, aliás, o texto do primeiro espetáculo da série, com seu grupo Malayerba, de Quito, com Instrucciones para abrazar al aire. A obra tem referência em fato verídico, ocorrido na Argentina sob a ditadura, na cidade de La Plata, em 1976. Um grupo militar invadiu uma residência particular, sob a alegação de que ali se fabricavam armas clandestinas, e fez desaparecer ao casal e uma filha, ainda adolescente. Na peça, os avós esperam pela neta, enquanto conversam.
Instrucciones para abrazar al aire, assim, faz referência a esta espera (em vão) que os avós realizam e que só pode se conformar num abraço ao ar, porque a figura da neta desaparecida é evanescente. Mas os espaços dramáticos se desdobram em três, de modo que se quebra toda a possibilidade de um teatro realista e documental, para se entrar num espetáculo altamente poético, interpretado pelo próprio Aristides Vargas e Maria Del Rosário Francés, uma extraordinária intérprete, cuja performance é tão fantástica que parece envelhecer/rejuvenescer a cada cena, conforme o espaço em que atua. Peça de denúncia e de reflexão, é também um espetáculo alegre e engraçado, mas sobretudo, altamente poético. Aliás, a dramaturgia de Vargas é das mais conhecidas no continente latino-americano. Felizmente, alguns exemplares de suas obras estavam à venda e isso também valorizou o encontro.
Não assisti a La razón blindada, inspirada no Quijote, de Cervantes, mas depois acompanhei a encenação de Flores arrancadas a la niebla, com texto do mesmo Aristides Vargas, pelo Grupo Línea Roja, da Argentina. Embora as duas atrizes, Natalia Marcet e Cecilia Ruiz, fossem excelentes intérpretes, a direção de Ana Woolf como que retirou do texto toda a sua emoção. A obra fala a respeito das passagens pelas aduanas e os desafios que retirantes e imigrantes sofrem em nosso continente. Mas a maneira contida, fria e distanciada da encenação como que a matou, literalmente esfriando qualquer emoção possível.
O terceiro espetáculo a que assisti constituiu-se em experiência à parte. O ator moçambicano Klemente Tsamba viveu a figura de Gungunhana, mítico rei tribal africano, no trabalho criado e interpretado por ele mesmo, chamado Nos tempos de Gungunhana, com inspiração nos relatos míticos reunidos em livro por Ungulani Ba Ka Khosa, um dos principais escritores moçambicanos contemporâneos, com inúmeras premiações. Gungunhana é um rei verdadeiro, que em algum momento reinou entre algumas tribos moçambicanas, tornando-se um dos mais ferrenhos adversários da dominação lusitana em seu território. Há um farto conjunto de anedotário em torno dele. Ngungunhane, uma das formas de grafar seu nome, ou Reinaldo Frederico Gungunhana, como queriam os portugueses, foi o último imperador de Gaza, reinando entre 1884 e 1895, quando foi derrotado e aprisionado por Mousinho de Albuquerque, que o levou preso a Lisboa, sendo depois desterrado para os Açores, onde morreu em 1906.
Pois é em parte a este personagem que Klemente Tsamba dá vida, reunindo uma série de narrativas mitológicas e em torno de sua figura. Os temas variam, da disputa política aos contos do cotidiano da aldeia. O que vale, contudo, é a maneira interativa com que Tsamba desenvolve seu trabalho, integrando imediatamente todo o público à sua narrativa, brincando com a plateia e esbanjando uma simpatia e um controle sobre o público simplesmente admirável - fazendo jus, plenamente, àquela ideia do narrador desenvolvida, há algumas décadas, por Walter Benjamin. O espetáculo é engraçado, criativo, dinâmico, e a plateia aderiu a ele com enorme vontade.
O festival ainda trouxe o Ubando Grupo, que apresentou um dos mais conhecidos textos de Qorpo Santo, Hoje sou hum: amanhã outro, uma criação coletiva; o Teatro La Rosa, de La Habana, Cuba, que apresentou Hojas de papel volando, baseado num livro de poemas de Patricia Ariza; além dos Clowns de Shakespeare, da cidade do Natal, Rio Grande do Norte, que mostrou Nuestra Senhora de las Nuvens, a partir de um texto de Aristides Vargas, mesclando os idiomas português e espanhol, numa recriação inesperada e poética.
Em outro trabalho autoral e individual, Ruben Pagura, nascido argentino mas radicado na Costa Rica, mostrou seu La historia de Ixquic, baseado no folclore indígena costa-riquenho, de insuspeitada poeticidade, incluindo os instrumentos musicais originais, artesanais, desenvolvidos pelo próprio artista, narrando a história de um amor impossível, ainda nos tempos dos grandes deuses, a partir dos textos inspiradores do Popol Vuh, de origem asteca, que formam uma espécie de gênesis das culturas indígenas da região. Pagura tem um domínio de cena admirável: seu modo de narrar, ao mesmo tempo intimista e épico, encanta e emociona.
Ainda foram apresentados Automakina - Universo deslizante, do grupo De pernas pro ar, da cidade de Canoas, e o próprio Caliban - A tempestade de Augusto Boal, da Terreira de Tribo, em parte prejudicado por ser teatro de rua e ter chovido bastante naqueles dias.
Acompanho desde sempre o grupo Ói nóis e tenho por estes atuadores um imenso respeito. Surpreendi-me ao ver os cabelos brancos de Paulo Flores, seu principal mentor. Afinal, ainda me lembro deste elenco num apertado espaço na rua Ramiro Barcelos, entre a Cristóvão Colombo e a Farrapos, onde hoje, creio, existe uma sauna, a mostrar alguns de seus trabalhos, dentre os quais um baseado em O café, de Mário de Andrade, sempre perseguidos pela polícia política de então. Eram subversivos. É verdade, eram-no e, felizmente, ainda o são, até hoje.
O pessoal da Terreira não só sempre foi independente e irreverente, quanto decidiu, por uma questão inclusive sobrevivência, não depender de ninguém, a não ser deles mesmos. Tendo ocupado, depois, um espaço na José do Patrocínio, sem contar com o apoio da Secretaria Municipal de Cultura, teve de deixar aquele lugar e dirigir-se para uma sede na zona Norte da cidade, onde se encontra até hoje. Os integrantes da Terreira aprenderam a fazer projetos e concorrer em editais públicos. É assim que têm alcançado concretizar algumas de suas mais importantes realizações, dentre as quais, as constantes publicações, em livro e de revistas, em torno de sua própria história e seus espetáculos e sobre o teatro, em geral. Foi assim que apresentaram um projeto para construir sua sede, depois de receberem um terreno da municipalidade. Mas na gestão passada, depois de aprovado o financiamento, em âmbito federal, acabaram perdendo o dinheiro por algumas incongruências produzidas no âmbito do projeto, por parte da SMC, o que levou o governo federal a cancelar o repasse de dinheiro, imbróglio que eles tentam agora resolver, com a administração de Luciano Alabarse à frente da Secretaria de Cultura. Mas eles não se abatem: Tânia Farias é uma mulher de pequena estatura, mas se torna gigante quando em cena, e imensa quando defende ideias. Sua fala, na abertura do festival, em pleno Theatro São Pedro, foi emocionada e emocionante. O conjunto aposta, sobretudo, em trazer grupos que fazem um teatro participante e popular, para levar tais espetáculos até os públicos de periferia, ou trazer tais públicos aos teatros do Centro da cidade, como o fizeram, mais uma vez, neste festival.
Livros, revistas, DVDs, o Ói nóis aqui traveis é o grupo mais bem organizado de teatro, da cidade, que conheço. A cada novo empecilho, ele responde com outro desafio. Os integrantes do grupo não se desesperam e não desistem: a simples realização deste festival bem o demonstra. Nossa cidade tem experimentado uma excelente animação dramática, graças aos diferentes festivais que aqui são mantidos, mediante aportes e iniciativas variadas. Nosso calendário é quase constante: entre janeiro e fevereiro, Porto Verão Alegre; entre abril e maio, o Palco Giratório, do Sesc; em junho, este Festival de Teatro Popular; e, em setembro, o Porto Alegre em Cena, da prefeitura municipal. Fora os festivais de teatro de rua e de dança, que ocorrem a cada ano. Não podemos nos queixar. Mas quero registrar que o conjunto de espetáculos reunido neste ano, por certo, superou tudo aquilo que o grupo havia proposto até então. Foi um dos momentos mais altos da temporada, a mostrar que nem mesmo as crises (a econômico-financeira, a moral, a política, a ética) que atravessamos no País, é suficiente para fazer desmoronar um grupo como este.
Como espectador, a gente só pode agradecer ao Paulo e à Tânia e a toda a sua equipe. Foi um momento significativo para todos nós, pela emoção, pelo aprendizado e pelas múltiplas experiências dramáticas vividas.
Conteúdo Publicitário
Leia também
Comentários CORRIGIR TEXTO