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Teatro

- Publicada em 26 de Maio de 2017 às 00:39

Espetáculo de exceção

No início, todos estávamos assustados e ansiosos: três horas e meia de espetáculo, mesmo com um intervalo, era algo inusitado. No final, todos estávamos grudados nas poltronas, boa parte com lágrimas a correr: todos, literalmente todos, profunda e irremediavelmente emocionados. Nunca mais teremos uma experiência semelhante. Salina é nome da personagem que dá - mais que justamente - título à peça teatral. Salina é uma mulher, aparentemente uma simples mulher: jovem, idealista, ela tem sua vida dizimada pelas decisões hierarquicamente tomadas pelo chefe do clã, por sua mãe e por todos os maiorais da tribo. Ela é obrigada a casar-se contra a vontade, sente-se violentada e, a partir daí, renega seu primogênito.
No início, todos estávamos assustados e ansiosos: três horas e meia de espetáculo, mesmo com um intervalo, era algo inusitado. No final, todos estávamos grudados nas poltronas, boa parte com lágrimas a correr: todos, literalmente todos, profunda e irremediavelmente emocionados. Nunca mais teremos uma experiência semelhante. Salina é nome da personagem que dá - mais que justamente - título à peça teatral. Salina é uma mulher, aparentemente uma simples mulher: jovem, idealista, ela tem sua vida dizimada pelas decisões hierarquicamente tomadas pelo chefe do clã, por sua mãe e por todos os maiorais da tribo. Ela é obrigada a casar-se contra a vontade, sente-se violentada e, a partir daí, renega seu primogênito.
Salina me levou a imaginar como seria assistir, no século V a.C., a uma tragédia num anfiteatro grego. Foi o mesmo sentimento que experimentei, domingo à noite, no Teatro Renascença. Mergulhei de cabeça na encenação que é, ao mesmo tempo, uma grande e épica narrativa em torno de uma mulher que resolve retomar sua identidade através da vingança - e uma espécie de ritual dramático, fortemente marcado pela religiosidade, que desenvolve esta mesma narrativa.
As diretoras Ana Teixeira e Stéphanie Brodt desenvolveram profunda, extensa e extraordinária pesquisa que resultou neste espetáculo absolutamente inesquecível, a partir do texto de Laurent Gaudé, traduzido pela própria Ana Teixeira. O espetáculo tem indicações a inúmeras premiações, em especial de direção, para melhor atriz - a emocionada e emocionante Ariane Hime - coreografia (de Tatiana Tibúrcio), cenários e figurinos, das mesmas Ana Teixeira e Stéphanie Brodt. Como elas antecipam, esta é uma África inventada: mas que África! Eis aqui o mistério e o milagre da arte: a invenção se torna mais real e verdadeira do que a própria realidade.
O espetáculo está dividido em duas partes: na primeira, Salina é a vítima. Todos decidem por ela. No final desta parte, o marido se encontra ferido, embora vitorioso, no campo de batalha. Ela pode salvá-lo, levando-o para a aldeia, mas prefere abandoná-lo, julgando que, assim, ele morrerá. Na segunda parte, Salina, de volta à aldeia, acha-se feliz: pelo costume, deverá casar-se com o filho mais moço da família do ex-marido, que faleceu. Foi sempre a sua paixão. É quando o sogro aparece e revela ter sido descoberta sua vingança contra o ex-marido, condenando-a à expulsão da aldeia que a adotara, quando ainda pequenina, ali chegara, trazida por um viajante estrangeiro. Salina parte e jura vingança. Se, até aqui, o enredo desenvolvia-se dentro de uma lógica realista, a partir de então entramos no campo do maravilhoso. Salina dá à luz a um filho que vem a gerar sem participação de qualquer homem. Ela começa a sua vingança: já deixara morrer o ex-marido; agora vai degolar o sogro, espalhando parte de seus ossos em lugares incertos, condenando-o a vagar eternamente pela terra; quer matar o filho primogênito, por ser a extensão do ex-marido, e vingar-se da ex-sogra. O enredo desenrola-se com certa violência, mas numa narrativa sempre poética e fortemente evocativa. A dramaturgia se vale do mesmo princípio da tragédia grega, mas com um acréscimo: as cenas de morte são sempre narradas, e não representadas, narrativas essas que ocorrem inclusive a partir de personagens mortos, como o ex-sogro. Esta alternativa torna o espetáculo profundamente dramático, decididamente emocionante e radicalmente envolvente. Aqui, coreografia, cenografia e figurinos, mais a trilha sonora, são definitivos, além de esculturas e objetos de cena de Maria Adélia.
O elenco todo é soberbo - não vou nomeá-los por seus nomes pessoais, mas por seus personagens: o sogro, a sogra, os dois irmãos, o jovem amante de Salina, a velha protetora, cada um é mais identificado com sua figura que o outro. Mas ninguém supera esta extraordinária Ariane Hime: primeiro, bonita, sensual, meiga, amorosa; depois, vingativa, megera, dominante, maquiavélica: mas sempre profunda e inesquecivelmente humana.
Eis um espetáculo de exceção. Há alguns anos, o Palco Giratório revelou-nos Gabriela, e o espetáculo foi tão definitivo quer retornou no ano seguinte. No ano passado, trouxe Caranguejo overdrive, tão profundo, que voltou neste ano. Espero, sinceramente, que Salina possa retornar no ano que vem. Eu preciso - nós todos precisamos - rever Salina. Rever Salina, e depois morrer.
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