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Empresas & Negócios

- Publicada em 28 de Março de 2017 às 13:47

O sapato de uma vida

Depois de 60 anos, Filla poderá poderá vestir um calçado bonito e confortável, feito sob medida

Depois de 60 anos, Filla poderá poderá vestir um calçado bonito e confortável, feito sob medida


JC
Samuel Lima
O aposentado Walmor Luiz Filla, de 63 anos, anda na ponta dos pés. Não por capricho: ele foi diagnosticado, aos três anos, com poliomielite, uma doença viral que pode causar paralisia em cerca de 1% das pessoas infectadas. Os calcanhares atrofiados o desequilibram e não permitem que ele se mova com naturalidade - e o único jeito de não cair é usar sapatos feitos sob medida.
O aposentado Walmor Luiz Filla, de 63 anos, anda na ponta dos pés. Não por capricho: ele foi diagnosticado, aos três anos, com poliomielite, uma doença viral que pode causar paralisia em cerca de 1% das pessoas infectadas. Os calcanhares atrofiados o desequilibram e não permitem que ele se mova com naturalidade - e o único jeito de não cair é usar sapatos feitos sob medida.
O problema é que não é nada fácil arrumar um calçado que torne sua vida minimamente confortável, o que faz com que Filla use o mesmo par durante longos períodos. É o que tem acontecido nos últimos oito anos - quase o tempo em que ele deixou sua cidade natal, Erechim, para viver na capital gaúcha. Todos os dias, ele calça um modelo preto, parecido com uma bota, com tiras em velcro. "Sou um senhorzinho de 63 anos, mas vaidoso", brinca.
Foi isso que o motivou a buscar um novo calçado confortável, mas de boa aparência. E essa busca durou cerca de um ano e meio. Primeiro, ligou para a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) de Novo Hamburgo, que não soube indicar uma fábrica que confeccionasse sapatos para deficientes físicos. A seguir, falou com a prefeitura do município, que repassou a ligação para a Secretaria de Indústria e Comércio. O município não foi escolhido ao acaso. Filla lembrou que o Vale dos Sinos é um tradicional polo calçadista. O palpite deu certo: encontrou por lá o professor Roberto Affonso Schilling, responsável por um projeto de extensão gratuito da Universidade Feevale que ensina alunos e público em geral a criar e reformar sapatos manualmente, doando-os a seguir para pessoas carentes.
O Projeto Pró-Fábrica - Sapateiros do Bem distribui entre 400 e 500 pares de calçados por ano à comunidade desde 2012. Cerca de 80 pessoas, de alunos da Feevale, principalmente dos cursos de moda e design, até desempregados em busca de recolocação no mercado de trabalho, participam anualmente dos seis módulos que compõem o projeto, que pretende ser "uma fábrica de pequeno porte", capacitando em todas as áreas da atividade.
Schilling, professor de Engenharia de Produção na Feevale, conta que o grupo recebe calçados em mau estado doados na Campanha do Agasalho, por exemplo, que são reformados na oficina. "A prefeitura não tem condições de consertar, então aproveitamos para ensinar o nosso pessoal no reparo desses calçados antes de doar para a comunidade. De outro jeito, aqueles sapatos só teriam como destino o lixo", diz.
Em um dos cantos da pequena sala que abriga, duas vezes por semana, o módulo de corte manual do projeto, fica Marco Antônio Spindler, de 62 anos. Ele trabalhou por anos como vendedor de sapatos femininos na região e é frequentador assíduo das oficinas, que conheceu em 2014. "Faço por prazer", conta ele. "Tenho paixão por ver a mulher com um sapato bonito no pé." É justamente das mãos dele que está saindo o par direito do calçado que Filla aguarda ansiosamente a cerca de 50 quilômetros dali.
O desafio começou no Instituto Senai de Tecnologia em Calçado e Logística, que escaneou os pés do aposentado para a criação de formas, doadas pela empresa Formello, de Campo Bom. Assim foi possível iniciar os trabalhos de confecção, que já deram resultado. O par esquerdo - de menor grau de dificuldade - ficou pronto em outubro de 2016. A expectativa é finalizar o direito ainda em abril. "Estamos fazendo um sapato mesmo, não um buraco onde ele enfia o pé", diz Spindler. "Os calçados dele até tinham funcionalidade, mas não conforto e design. Ele quer agora um sapato agradável de usar. Vai melhorar a autoestima", afirma Schilling.
Filla conta que já viu - e aprovou - o sapato que está pronto, o que só fez crescer a expectativa. O modelo é feito de couro preto, com reforços, cadarços e tiras de fixação ao tornozelo. Dentro, há estruturas de suporte em EVA, anatômicas, com compensação de altura, acopladas às palmilhas. Conta ainda com ajustes especiais para proteger os pés e dispositivos na região dos dedos para "melhor harmonia visual" entre os sapatos, conforme o professor. "É uma produção única, artesanal", conta Schilling. Os únicos pedidos do aposentado foram de que o calçado se adaptasse bem ao jeans e fosse bonito.
Filho de pais pobres, Filla cresceu com dificuldade em Erechim, enfrentou preconceito em escola estadual e outra privada, onde a mãe conseguiu bolsa de estudos, passou em concurso público para auxiliar de tesoureiro na prefeitura e chegou a cursar cinco semestres em Direito na Universidade de Passo Fundo - faculdade que trancou ainda jovem para cuidar da filha que teve com a namorada, com quem casou poucos dias antes do nascimento e de quem hoje está separado. Mora em Porto Alegre há sete anos, desde o divórcio, para ficar perto da irmã e cuidadora, Clarice. Em toda a trajetória, só conseguiu um sapato "decente", em suas palavras, há oito anos. Antes, comprava números maiores e colocava preenchimentos "bem fajutos e feitos a facão".
Aos 63 anos, Walmor Filla não demonstra ter grandes planos. "Eu espero é não cair", brinca. Também diz querer visitar seu melhor amigo na França, "antes de subir". Quando perguntado se existe algo que queira fazer depois de ganhar o sapato, pensa por alguns segundos. "Como sou vaidoso, quem sabe uma calça que combine e uma camisa, para mostrar para a família, para a filha, para o neto que está chegando", responde. "Minha irmã está tão ansiosa quanto eu."
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