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Direitos humanos

- Publicada em 22 de Dezembro de 2016 às 16:20

STJ gera jurisprudência que descriminaliza desacato à autoridade

De acordo com Rodrigo Puggina, desacato pode ser antecedido por abuso de autoridade

De acordo com Rodrigo Puggina, desacato pode ser antecedido por abuso de autoridade


JC
Bastante criticado por ativistas de direitos humanos, que o consideram um mecanismo que pode provocar prisões arbitrárias, o ato de desacato à autoridade não é mais crime, conforme decisão da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Segundo o relator do recurso, ministro Ribeiro Dantas, a tipificação é incompatível com o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos, que determina que "toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão". A decisão foi unânime.
Bastante criticado por ativistas de direitos humanos, que o consideram um mecanismo que pode provocar prisões arbitrárias, o ato de desacato à autoridade não é mais crime, conforme decisão da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Segundo o relator do recurso, ministro Ribeiro Dantas, a tipificação é incompatível com o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos, que determina que "toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão". A decisão foi unânime.
Dantas ratificou os argumentos apresentados pelo Ministério Público Federal (MPF) de que os funcionários públicos estão mais sujeitos ao escrutínio da sociedade, e que a legislação referente ao desacato à autoridade no Brasil atenta contra a liberdade de expressão e o direito à informação. Na decisão, a Quinta Turma pontuou que o Supremo Tribunal Federal (STF) já firmou entendimento de que os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil têm natureza supralegal e que a condenação por desacato, baseada no artigo 331 do Código Penal, é incompatível com o tratado do qual o Brasil é signatário. A previsão do Código Penal é de detenção de seis meses a dois anos e aplicação de multa.
A decisão visa à adequação de uma norma legal brasileira a um tratado internacional, o que pode ser feito na análise de um recurso especial. "O controle de convencionalidade não se confunde com o de constitucionalidade, pois a posição supralegal no tratado de direitos humanos é o bastante para superar a lei ou o ato normativo interno que lhe for contrário, abrindo ensejo a recurso especial", explica o ministro relator.
A lei de desacato foi criada para dar maior proteção aos servidores públicos frente a críticas, em comparação com o restante da população. A pretensão, contudo, é vista pelo STJ como contrária aos princípios democráticos e igualitários que regem o País. "A criminalização do desacato vai na contramão do humanismo, porque ressalta a preponderância do Estado, personificado em seus agentes, sobre o indivíduo", destaca Dantas.
No caso submetido a julgamento, um homem havia sido condenado a cinco anos e cinco meses de reclusão por roubar uma garrafa de bebida avaliada em R$ 9,00, por desacatar os policiais que o prenderam e por resistir à prisão. Os ministros afastaram a condenação por desacato.

'Decisão atende a demandas de movimentos sociais'

Segundo o coordenador da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil do Rio Grande do Sul (OAB-RS), Rodrigo Puggina, a decisão do STJ veio no sentido de atender às demandas de movimentos sociais ligados aos direitos humanos. "A ditadura militar teve uma marca muito forte em relação ao crime de desacato à autoridade, mas até hoje é comum ver alguém em uma discussão com um policial, por exemplo, ser detido por desacato", ressalta.
Puggina observa que a prisão por desacato costuma vir acompanhada também de ocorrência por resistência à prisão. "O policial considera que foi desacatado e resolve prender quem o desacatou por esse crime. Aí, a pessoa que está sendo presa se indigna e resiste", aponta.
A decisão não tem o poder de revogar o artigo 331 do Código Penal, que só poderia ser modificado pelo Congresso. Porém, o coordenador da comissão da OAB-RS considera a determinação como um início de diálogo sobre desacato. "Nada impede, por exemplo, que se eu faltar com respeito a um servidor público ele me processe por calúnia, injúria ou difamação, como qualquer outra pessoa que não esteja no funcionalismo público. O grande problema é que a detenção por desacato muitas vezes vem acompanhada de algum abuso de autoridade", afirma.
Sob a ótica de Puggina, algumas circunstâncias nas quais o crime de desacato é aplicado podem ser substituídas pelo crime de desobediência. "Se alguém me determinar por ordem legal que eu deva fazer isso ou aquilo e eu não fizer, posso ser detido por desobediência. O desacato, no entanto, envolve uma figura de sentimento de desrespeito, muito subjetiva", critica.
Como não houve mudanças no Código Penal, as pessoas ainda podem ser encaminhadas para a delegacia, onde assinarão um termo circunstanciado. "A decisão do STJ não acaba com essa figura jurídica, mas abre brecha no sentido de que, na prática, o desacato não pode mais ser considerado crime. Se eu for para a rua, um policial pode me prender por desacato, mas eu responderei o processo em liberdade", esclarece o advogado.

Para advogado, tipificação atinge apenas os mais pobres

A decisão em âmbito jurídico, no entanto, pode ser importante para servir como jurisprudência, uma referência para que outros juízes, quando receberem causas como essa, entendam que já há uma decisão do STJ nesse sentido e usem o exemplo em suas próprias decisões, absolvendo a pessoa, de acordo com Puggina.
"Um ponto interessante é que a decisão traz a discussão de que o crime de desacato não costuma atingir pessoas de classe média ou alta, e sim os mais pobres, de periferia, que às vezes se submetem a um abuso de autoridade e, se levantarem a voz para reagir, serão levados para a delegacia. Isso é muito triste, porque ajuda quem comete o abuso", argumenta o coordenador da comissão da OAB-RS.
Para Puggina, há questões culturais muito fortes a serem enfrentadas para que as prisões por desacato realmente cessem. "Me lembro de uma vez que, conversando com egressos do sistema prisional, percebi as dificuldades que eles sentiam ao serem abordados pela polícia. Por terem antecedentes criminais, eles precisavam ficar quietos ao sofrerem abusos, porque senão eram levados por desacato. Eu acho que ainda temos muito a ideia do 'você sabe com quem está falando?' na nossa sociedade", avalia.
Além disso, o advogado considera que falta o funcionário público entender que a função que exerce existe para servir à população e às pessoas. "Uma reclamação que não for entendida como desacato pode, por exemplo, ser tratada como forma de a população ter liberdade para reclamar ou dialogar com o policial. Eu não quero que o policial se sinta desrespeitado, eu quero que ele escute", defende.
Há subnotificação dos crimes de abuso à autoridade, na opinião de Puggina. "Temos uma grande dificuldade de saber o quanto isso acontece, porque aquela autoridade que exerce o abuso de poder causa tanto temor na pessoa, geralmente de periferia e sem recursos, que acabam ficando com medo de denunciar. A pessoa leva um tapa na cara e sente que não pode denunciar, pois acha que pode ser perseguida. Os números que chegam ao sistema judicial são muito superficiais", estima.