Ricardo Gruner
Em seu segundo filme em sequência, o veterano cineasta Clint Eastwood gera polêmica - embora agora as discussões sejam menos acaloradas e tenham cernes bem diferentes do que em seu longa anterior. Sniper americano (2014) fez sucesso de bilheteria e causou divergência por colocar em destaque a figura real de um atirador de elite que matou pelo menos 160 pessoas no Iraque. Já Sully - o herói do rio Hudson, em cartaz a partir da próxima quinta-feira, aborda a história do piloto que aterrissou nas águas de Nova Iorque em 2009. A controvérsia dessa vez é a licença poética na dramatização dos eventos. Previsto para estrear dia 1 no Brasil, o filme foi adiado devido à tragédia com a Chapecoense.
O longa-metragem se passa naquele mesmo ano e tem como episódio central o pouso forçado. Logo no começo da narrativa, o espectador desmemoriado já fica sabendo do que aconteceu: Chesley "Sully" Sullenberger viu as turbinas da aeronave que comandava serem comprometidas após o choque com uma revoada de pássaros. A solução encontrada foi dirigir-se ao Hudson, avisar a tripulação sobre o impacto e buscar o impossível.
O personagem principal é interpretado por Tom Hanks, ator que trabalha pela primeira vez com Eastwood, diretor seis vezes indicado ao Oscar. Na preparação para a produção, o astro contou com apoio do Suellenberger real - que comentou as cenas apontadas pelo roteiro. Como o milagre protagonizado pelo piloto foi realizado em apenas 208 segundos, o enredo destaca as horas posteriores. Saudado pelo público e exaltado pela mídia, o personagem tem de passar pela investigação do que aconteceu e do que poderia ter acontecido naqueles minutos.
A dramatização é eficiente: o recorte destaca o estado emocional do comandante ao mesmo tempo em que celebra o resultado da aterrissagem. Não é para menos, uma vez que, aos olhos do povo, não há dúvidas que Sully evitou uma tragédia. "Há muito não temos uma notícia boa por aqui, sobretudo relacionada a um avião", afirma um personagem, referindo-se também ao clima de insegurança nos Estados Unidos nas guerras do Iraque e Afeganistão e com a crise econômica.
Se a tônica é de glorificação - e o longa-metragem é emocionante, ainda que bastante convencional -, faltava um antagonista. É aí que entra a polêmica. No longa, os funcionários do órgão governamental responsável pela investigação do acontecimento são os vilões. O roteiro de Todd Komarnicki coloca os oficiais como burocratas determinados a apontar desvios na conduta de Sullenberger, que teria como opções de pouso dois aeroportos. Ex-funcionários do Conselho Nacional de Segurança e Transporte, entretanto, acharam a releitura exagerada.
A versão dos produtores é compreensível. Há o aspecto comercial: Eastwood faz entretenimento e, afinal de contas, imprecisões históricas são comuns neste tipo de adaptação. Mas o ponto principal é que o roteiro tem como base a biografia de Sully - e essa figura humana ganha destaque em ações e sensações. Após a tragédia iminente, o protagonista é tomado por um misto de ansiedade, euforia e apreensão. Sua carreira e sua reputação podem estar em jogo, e a sensação de sufocamento ganha contornos (exagerados ou não) através da desconfiança do governo.
O elenco conta também com nomes como Aaron Eckhart (Obrigado por fumar), Mike O'Malley (da série Glee), Laura Linney (Conta comigo) e Anna Gunn (Breaking bad). Com exceção do primeiro, que interpreta o copiloto Jeff Skiles, pouco espaço há para os coadjuvantes. O filme é mesmo de Hanks, que volta a interpretar uma pessoa contida, mas cheia de angústias. Já as outras peças da narrativa estão lá apenas para agregar à sua trajetória.
Longe do topo da extensa cinegrafia de Clint Eastwood, Sully funciona também como uma carta de amor ao heroísmo diário dos anônimos - e é aí onde se sai melhor. O milagre só foi alcançado pela força conjunta de uma série de agentes que estavam na hora e no local certos, embora o comandante seja a personificação maior dessa equação. Nesse sentido, o longa-metragem é mais uma merecida homenagem do que um marco inesquecível para a sétima arte - mas isso tampouco quer dizer que o cineasta, já aos 86 anos, passe vergonha.