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Especial

- Publicada em 18 de Agosto de 2016 às 16:46

Repressão às drogas e os efeitos na segurança pública

Dez anos depois de criada, Lei de Drogas tem eficácia contestada e está em vias de ser substituída

Dez anos depois de criada, Lei de Drogas tem eficácia contestada e está em vias de ser substituída


FLAVIA VILELA/ABR/JC
De eficácia contestada e em vias de ser substituída por uma nova legislação, a Lei nº 11.343, popularmente conhecida como Lei de Drogas, foi sancionada no dia 23 de agosto de 2006 e completa, na data de hoje, a sua primeira década de existência. Neste período, o texto normativo foi regulamentado pelo Decreto nº 5.912, de 27 de setembro de 2006, e alterado pela Lei nº 12.219, de 2010, e pela Lei nº 12.961, de 2014.
De eficácia contestada e em vias de ser substituída por uma nova legislação, a Lei nº 11.343, popularmente conhecida como Lei de Drogas, foi sancionada no dia 23 de agosto de 2006 e completa, na data de hoje, a sua primeira década de existência. Neste período, o texto normativo foi regulamentado pelo Decreto nº 5.912, de 27 de setembro de 2006, e alterado pela Lei nº 12.219, de 2010, e pela Lei nº 12.961, de 2014.
O texto em questão trata da temática de uma forma ampla. Entre as suas determinações está a instituição do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad). Além disso, traz a prescrição de medidas para a prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes; e o estabelecimento de normas para a repressão ao tráfico e à produção não autorizada de drogas.
A legislação antecedente datava de 1976; e, para Salo de Carvalho, professor de Direito Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o texto normativo que está em vigor operou duas reformas mais contundentes. A primeira delas foi a extinção da previsão de pena privativa de liberdade para o usuário de drogas. Ou seja, aquele que porta drogas para consumo próprio não pode ser preso. "O artigo 28 da nova lei determina que as penas para o sujeito que porta drogas para uso pessoal devam ser alternativas e, inclusive, veda, expressamente, a prisão", explica Carvalho, que é autor do livro "A Política Criminal de Drogas No Brasil - Estudo Criminológico e Dogmático". A segunda reforma diz respeito à previsão de penas maiores para o tráfico de drogas. O artigo 33 da Lei nº 11.343, que trata das modalidades de tráfico, aumentou as penas, que antes eram de três a 15 anos e passaram a ser de cinco a 15 anos de reclusão.
Para o presidente da Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas (Abramd), Rubens de Camargo Ferreira Adorno, a mudança na Lei de Drogas, recrudescendo a punição para o tráfico e diminuindo para o uso, teve um resultado contrário ao esperado. "Isso tem a ver com um certo olhar que a polícia tem sobre jovens da periferia e negros. Alguns estudiosos falam em racismo institucionalizado. O jovem que vive na periferia ou que é pobre e tem uma pele mais escura, se for encontrado com poucas gramas de maconha, acaba sendo enquadrado como traficante." O resultado disso, conforme o sociólogo, é o aprisionamento em massa de jovens pobres e negros no País. "É uma das maiores injustiças sociais contemporâneas que ocorrem no Brasil. Os sociólogos costumam chamar de violência estrutural. É aquela violência que o Estado promove contra as classes desfavorecidas."
A polêmica a respeito da legalização do consumo de drogas está vinculada ao uso das substâncias para fins recreativos, sendo esta a única finalidade vedada pela legislação. A decisão pela manutenção, ou não, da política de repressão aos entorpecentes apresenta reflexos nas áreas de saúde, economia e, principalmente, na segurança pública, cuja luta contra o tráfico é a que gera maiores perdas, tanto econômicas quanto sociais.

A repressão ao tráfico no Brasil

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Falar sobre tráfico de drogas remete, geralmente, a uma determinada imagem social, construída ao longo do tempo, vinculada à figura do traficante. Ou seja, em regra, se imagina aquele sujeito que realiza um grande comércio de drogas e que participa de uma organização criminosa. Para o jurista Salo de Carvalho, é a intenção de lucro que move as pessoas a fazerem essa imagem do tráfico. "As pessoas não sabem o que é tráfico. Elas têm uma imagem, que, na verdade, é uma imagem distorcida de uma modalidade. Têm outras situações com grau muito inferior de reprovabilidade e que possuem a mesma pena", enfatiza.
Em se tratando desse tipo penal, os criminosos não possuem um perfil homogêneo, variando, inclusive, de acordo com a substância traficada. Para o delegado da Polícia Civil gaúcha Mario Souza, quando se trata de crime organizado, existe uma diferença entre o perfil do criminoso que faz parte de uma quadrilha que trafica drogas sintéticas - ecstasy, lança-perfume e LSD - e o que integra uma quadrilha que trabalha com as substâncias tradicionais - crack, cocaína e maconha. Geralmente, o traficante de drogas sintéticas não anda armado, circula no meio universitário, tem mais condições financeiras e frequenta lugares que são mais caros. Já aquele que trafica drogas tradicionais costuma fazer parte de uma facção, andar armado, e possui menos condições financeiras.
A Lei de Drogas, em seu artigo 33, estabelece que 18 condutas podem configurar tráfico de drogas, e a todas elas é imposta a mesma pena, de cinco a 15 anos de reclusão. Partindo desta premissa, quem fornece gratuitamente drogas a alguém estará sujeito à mesma punição de quem importa as substâncias. Neste sentido, Carvalho acredita que existe uma notória desproporcionalidade, pois a lei punirá com a mesma pena um sujeito que lucra com a atividade e outro que, eventualmente, em uma festa, fornece drogas a outra pessoa sem qualquer interesse financeiro.
A afirmação de que a lei é desproporcional, ao elencar 18 verbos (veja arte) que configuram o tráfico de drogas, é contestada por Souza. Para o diretor da Divisão de Investigações do Departamento Estadual de Narcotráfico (Denarc), é necessário visualizar a questão a partir de uma situação específica. "Não é verdade, é só mudar o caso concreto. Dar drogas para uma criança de 12 anos ou vender para um sujeito que já é viciado, o que ofende mais a sociedade? Dar drogas para a criança", enfatiza. Souza argumenta que a questão da pena será avaliada pelo juiz, em outra fase da aplicação da lei.

Quadrilhas estão cada vez mais violentas

Outra percepção constada pelas autoridades policiais é que as quadrilhas estão adotando, cada vez mais, um comportamento violento. "As quadrilhas estão brigando cada vez mais entre elas", afirma o delegado da Polícia Federal Roger Cardoso. Algumas vezes, a violência não está na reação contra a polícia, mas sim na defesa de território.
A conduta violenta pode ser verificada, principalmente, em duas situações: na utilização de armamento pesado - muitas vezes, oriundo do tráfico internacional de drogas - e na prática de homicídio. Sobre o armamento pesado, Cardoso conta que, há dez anos, não se ouvia falar da apreensão de um fuzil em Porto Alegre, mas que o quadro mudou. "Isso era uma coisa muito rara. Hoje, é comum. Acredito que 90% dos casos, ou mais, estão relacionados a quadrilhas do tráfico de drogas." A percepção do delegado é a mesma de Souza, que afirma ter constatado um aumento de apreensões de fuzis pela Polícia Civil, principalmente no âmbito do Denarc.
 

Compartilhamento de informações de inteligência é fundamental para ações policiais

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O foco principal da atuação da Polícia Federal (PF) é o tráfico internacional. Em algumas situações, também atua no tráfico doméstico, mas a prioridade é fiscalizar a droga que entra e sai do País. Conforme Roger Cardoso, delegado da PF no Rio Grande do Sul, as delegacias localizadas em zonas de fronteira são centros integrados de repressão ao tráfico de drogas. "Todos trabalhamos juntos com essas unidades, principalmente no que se refere à inteligência policial", esclarece.
A PF também trabalha com o objetivo de apreender o patrimônio que sustenta o tráfico. Entre 2010 e 2015, sequestrou de traficantes um total de R$ 739.693.111,49, contabilizando bens e valores. Deste montante, R$ 29.610.693,00 são provenientes das ações no Estado.
A fiscalização também se dá na malha rodoviária nacional. O trabalho é feito pelas polícias rodoviárias dos estados e pela Polícia Rodoviária Federal (PRF). No que diz respeito à atuação da PRF, o inspetor Antônio Marcos Martins Barbosa, chefe substituto da seção de policiamento e fiscalização do órgão no Rio Grande do Sul, explica que a principal medida é a fiscalização por amostragem. "A entrevista denuncia muito quando a história não bate. Vai para onde? O que transporta? O que vai fazer lá? Quando percebemos que a história não bate, vamos além e verificamos para-choque, tanque de combustível, bancos, painel, locais em que costumam esconder essas substância. Também atuamos na área de inteligência, que é um dos principais trabalhos hoje e, apesar de não desenvolvermos um trabalho conjunto com a rodoviária estadual, porque tanto eles quanto nós temos carência de efetivo, mantemos o contato e, sempre que uma precisa da outra, esse auxílio é imediato", ressalta.
No âmbito da Polícia Civil gaúcha, o Departamento Estadual de Narcotráfico (Denarc) tem por atribuição atividades referentes ao combate e à investigação dos delitos de tráfico e uso indevido de substâncias entorpecentes. "A vocação inicial do departamento é o combate ao crime organizado, ao narcotráfico, às facções mais perigosas que atuam em todo o Estado e que, eventualmente, fazem o abastecimento de traficantes menores", explica o delegado Mario Souza. O Denarc se subdivide em Divisão de Prevenção e Educação (Dipe), Divisão de Informações Criminais (DIC), Divisão de Investigações do Narcotráfico (Dinarc), e Divisão de Assessoramento Especial (DAE).
Além do combate ao narcotráfico organizado, o Denarc também atende às denúncias da comunidade, que são feitas por meio do telefone 0800-518518. A ligação, gratuita, é atendida por um policial de investigação, e não é possível identificar de onde a chamada foi realizada. O delegado também enfatiza que todas as denúncias são verificadas, sendo que, na Capital e na Região Metropolitana, a ocorrência é atendida pelo próprio Denarc, já no Interior, é solicitado que outros órgãos da Polícia Civil façam a verificação. O departamento também dá atenção especial a uma operação que foi batizada de "Anjos da Lei", que combate o tráfico de drogas nas proximidades de escolas.
A droga que chega ao Estado é, geralmente, para ser consumida aqui. "Somos um estado consumidor. Atualmente, esta é a nossa vocação", enfatiza. A constatação do delegado é compartilhada pelo inspetor Barbosa, que explica que o destinatário final, em sua grande maioria, é o consumidor gaúcho. "O cigarro, sim, boa parte é produzida no Paraguai e atravessa o Estado para ir ao Uruguai. Há várias quadrilhas especializadas em fazer esse transporte, mas, quando se trata de droga ilícita - como crack, maconha, cocaína, ecstasy -, normalmente, o destino final é o Rio Grande do Sul."
Em agosto de 2015, a PF gaúcha apreendeu, em uma chácara no interior do Alegrete, quase meia tonelada de cocaína. Segundo Cardoso, a droga era produzida na Bolívia e chegava ao Brasil de avião. Depois, seria levada por caminhões até São Paulo, onde seria comercializa. "Imagino que, hoje, a fronteira do Mato Grosso do Sul com o Paraguai e com a Bolívia é relativamente bem protegida por diversos órgãos de segurança. Portanto, acredito que esses traficantes internacionais estão verificando novas rotas que possibilitem a chegada da droga, principalmente, na região Sudeste, que é o maior mercado consumidor do Brasil", explica. Para o delegado, a situação não era comum, mas é possível que passe a se repetir no Rio Grande do Sul.

'Não é o uso de drogas que causa a violência. É a guerra às drogas que causa a violência'

Dez anos depois de criada, Lei de Drogas tem eficácia contestada e está em vias de ser substituída por uma nova legislação

Dez anos depois de criada, Lei de Drogas tem eficácia contestada e está em vias de ser substituída por uma nova legislação


FLAVIA VILELA/ABR/JC
É quase um consenso entre estudiosos da área que a relação entre as drogas e os índices de violência passa pela proibição de uma grande gama de entorpecentes. Sem o comércio legal e regulamentado, criou-se um mercado paralelo, alimentado pela grande quantidade de consumidores, o qual fomenta a rede que, literalmente, municia a violência endêmica no País: o tráfico de armas.
Para o sociólogo e doutor em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP) Rubens de Camargo Ferreira Adorno, desestruturar o tráfico de drogas geraria um efeito direto nos números da violência urbana brasileira. "Acho que grande parte da violência, em torno de 50% a 60%, seria combatida, pois é o tráfico de drogas que propicia o tráfico de armas. Grande parte do armamento mais pesado e sofisticado é financiado pelo tráfico de drogas", afirma.
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Conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2015, o tráfico de drogas representou 24,8% dos atos infracionais cometidos no Brasil em 2013. O crime só fica atrás em ocorrências ao delito de roubo. No Rio Grande do Sul, de acordo com dados da Secretaria Estadual da Segurança Pública, no ano passado, foram registradas 20.100 ocorrências relacionadas às drogas (posse e tráfico). Destas, 3.049 apenas em Porto Alegre. A grande quantidade de casos reflete no sistema prisional. Atualmente, conforme o Ministério da Justiça, 28% dos presos no Brasil cumprem pena por crimes relacionados às drogas.
Adorno levanta uma outra questão pouco citada quando se fala sobre o comércio e uso de entorpecentes e o impacto na criminalidade. Uma das linhas de pesquisa do acadêmico trata do aparecimento do crack na cidade de São Paulo. Segundo ele, desde o surgimento da droga, entre populações em situação de rua ou em bairros periféricos, houve uma demonização da substância, transmitindo-se, desde então, uma imagem, inclusive veiculada pela mídia, de que o crack era uma droga violenta. "As pesquisas mostram que os próprios usuários passaram a incorporar essa imagem da violência. Não era o efeito da droga em si, mas como isso foi produzido", diz.
Nas periferias das grandes metrópoles, drogas e violência caminham lado a lado. O imaginário de que é dessas áreas que saem os agentes causadores da violência em todas as regiões já se internalizou na sociedade brasileira. O presidente da Abramd destaca o importante papel que os meios acadêmicos têm em se aproximar das comunidades mais carentes e desmitificar essa relação. "Na mentalidade das periferias, a violência e as mortes estão ligados às drogas. Como se drogas causassem isso. A droga é o grande mal. Temos de desconstruir essa ideia. Não é o uso de drogas que causa violência. É a guerra às drogas que causa a violência. Precisamos desconstruir a ideia de que é a droga que mata. Não, quem mata é a polícia ou os traficantes em nome da guerra às drogas."

Combate nas cidades não pode recair apenas sobre a polícia

Quando se fala em medidas de combate ao tráfico de drogas nas grandes cidades, geralmente se liga as ações com a atuação das polícias civis e militares. O trabalho dos órgãos policiais é apenas o mais visível de uma rede que, ao menos em um cenário ideal, deveria ser composta por agentes das áreas da saúde, da educação, da assistência social, entre outras.
O gaúcho José Mariano Beltrame está a frente, desde 2007, da Secretaria de Segurança Pública do Rio Janeiro. Sob a sua responsabilidade, estão as políticas e ações públicas de combate à violência na segunda maior cidade do País, com mais de 6,4 milhões de habitantes e com áreas de permanente conflito entre facções pelo comando do tráfico de drogas.
Trabalhando com segurança pública desde 1981, Beltrame é hoje um ferrenho defensor de novas formas de se pensar o combate às drogas e ao tráfico. "Pelas vidas perdidas, entre policiais, inocentes e marginais, temos hoje mais derrotas do que vitórias."
O secretário carioca aponta a não regulamentação do artigo 144 da Constituição Federal, que trata de segurança pública, como um vício de origem nas atribuições dos órgãos da área no Brasil. "Isso mostra o desinteresse que existe na segurança pública. Diz lá de maneira bonita que a segurança pública é obrigação do Estado e responsabilidade de todos. O que é um dever de todos? Como pode ser medido e calculado em ações que sejam mensuráveis? Aí fica nessa mesmice, a polícia enxugando gelo. O próprio conceito de ordem pública é extremamente subjetivo. Nessa esteira, estamos perdendo o jogo", afirma.
Para o doutor em Direito Salo de Carvalho, a invisibilidade dos grandes importadores de drogas é outro fator-chave que impede um combate eficiente ao tráfico. "O grande financiamento do tráfico e do comércio de drogas cai naquilo que se chama de cifra oculta. Obviamente, há um interesse econômico muito forte por trás, é um comércio extremamente lucrativo", observa.
Carvalho relaciona a criminalização das drogas com a violência urbana e enfatiza o papel nada honroso que alguns agentes públicos possuem neste cenário. Segundo ele, a criminalização dos entorpecentes gera não somente um comércio ilícito lucrativo, mas também uma rede ilícita lucrativa, na medida em que o dinheiro do tráfico precisa ser "lavado". Assim sendo, conforme o pesquisador, a garantia da segurança da droga passa também pelo tráfico de armas. "A criminalização do comércio de drogas gera uma criminalidade secundária extremamente violenta e altamente lucrativa que acaba criando uma blindagem no próprio debate da legalização. Isso sem falar, ainda, na rede de corrupção dos agentes da polícia. Não há, é impossível termos, um comércio com o volume de drogas, com a importação, com as fronteiras que nós temos, sem uma blindagem das próprias forças de segurança."

'O crime violento se cria onde o Estado não está'

Dez anos depois de criada, Lei de Drogas tem eficácia contestada e está em vias de ser substituída por uma nova legislação

Dez anos depois de criada, Lei de Drogas tem eficácia contestada e está em vias de ser substituída por uma nova legislação


FLAVIA VILELA/ABR/JC
Superior direto das polícias civil e militar do Rio de Janeiro há nove anos, Beltrame não nega a existência da corrupção policial. O secretário, porém, salienta que o sistema brasileiro de segurança pública coloca sobre as costas do agente de segurança uma responsabilidade muito grande. "Quando pensamos em alargar os horizontes, não dá para pensar em questões particulares, e sim em todo o conceito de segurança pública. Hoje, segurança pública é sinônimo de polícia", diz.
Para ele, no universo de instituições com herança do Estado totalitário existente no Brasil durante o regime militar (1964-1985), a polícia é a parte mais fraca. "Tudo que não funciona é jogado para a polícia. O adolescente não tem pai nem mãe, comete infração, vai para a polícia. E depois? A polícia passa a ser o medidor da ineficiência de todo esse sistema. No ano passado, levamos 11,5 mil jovens para delegacias. O que foi feito com eles? Onde estão? Que tipo de tratamento tiveram? Há um foco na polícia, e tem que ter, mas não há o mesmo foco no sistema de segurança. Se ficarmos só nisso, você pode me cobrar: a situação só vai piorar", afirma.
Beltrame aponta a necessidade de se olhar para a segurança pública como um ponto essencial para o desenvolvimento. Ele exemplifica dizendo que milhões de pessoas saíram da linha da pobreza no Brasil nos últimos anos, entretanto, os números de violência não diminuíram. "A discussão é mais profunda, perpassa a questão específica de polícia, que tem seus problemas, inclusive de corrupção, mas o discurso não pode ser exclusivista. Estudiosos pensam no fenômeno da violência, não só na polícia."
Para o gestor, o Estado brasileiro agora arca com os custos de décadas de descaso com as questões sociais e, mesmo precisando entender bem como se processa a violência, não é a polícia que vai resolver o problema. "É uma situação bem complicada, e os governos são os culpados. Eles isolaram essas pessoas, criaram guetos, e hoje temos muita gente desempregada, que foi para o vício, para o crime, e o País não acordou ainda para esse tema. Falta integração, transparência e objetividade. Normalmente, o crime violento se cria onde o Estado não está."