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Entrevista Especial

- Publicada em 10 de Julho de 2016 às 23:02

Europa deve refundar seu projeto constituinte, afirma Toret

"Se não há um projeto emancipador, surgirá um que seja conservador", diz Toret

"Se não há um projeto emancipador, surgirá um que seja conservador", diz Toret


FREDY VIEIRA/JC
Há pouco mais de cinco anos, em 15 de maio de 2011, os chamados "indignados", acampados nas praças principais de diversas cidades da Espanha, mostraram sua descrença no sistema político vigente e lançaram a semente de um novo movimento.
Há pouco mais de cinco anos, em 15 de maio de 2011, os chamados "indignados", acampados nas praças principais de diversas cidades da Espanha, mostraram sua descrença no sistema político vigente e lançaram a semente de um novo movimento.
O 15M, baseado na democracia direta e em rede, teve entre seus desdobramentos o surgimento de partidos como o Podemos e o Ganhemos, que obtiveram ampla representação parlamentar e conquistaram prefeituras de cidades como Madrid e Barcelona em 2015. Ativista do 15M, Javier Toret esteve no início dessa turbulência social e hoje se dedica a analisar os grandes movimentos populares ao redor do mundo, da Primavera Árabe ao junho de 2013 no Brasil.
Em Porto Alegre para um evento sobre a "Democracia Real", organizado pelo P-Sol, Toret fez um balanço do impacto do 15M na política espanhola, onde o cenário de crise e falta de representatividade persistem entre a população. No pleito de junho, não houve maioria parlamentar suficiente para a eleição do primeiro-ministro. Mesmo assim, para Toret, "numa perspectiva histórica, um grupo que consegue eleger 71 deputados em dois anos é incrível", diz, avaliando o desempenho da coligação encabeçada pelo Podemos.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Toret também contou sobre as experiências de democracia direta do movimento municipalista Barcelona en Común, do qual faz parte, e analisou o contexto europeu atual, que vive fatos como a saída do Reino Unido da União Europeia e ascensão dos partidos de extrema-direita em meio à crise dos refugiados.
Jornal do Comércio - Para relembrar, que contexto e fatos levaram ao 15M?
Javier Toret - A crise de 2008, econômica e política, de falta de representatividade, gerou um movimento muito grande entre 2007 e 2011, que construiu uma massa crítica por meio da internet. A Primavera Árabe também foi uma influência importante, porque aconteceu um pouco antes e, de alguma maneira, mostrou que era possível se organizar via internet. Depois, mais concretamente, um grupo se formou na rede, chamado Democracia Real Ya. E eu entrei no princípio desse processo, durante três meses antes do 15M em 2011, organizando uma mobilização sem partido pela internet. Foi uma manifestação exitosa, levou às ruas 150 mil pessoas em todo o país, de forma auto-organizada, como algo novo, uma forma de empoderamento da cidadania por meio da internet. O lema era "não somos mercadoria nas mãos dos banqueiros, queremos democracia real já". Era o momento de sair às ruas. Essa mobilização para a "democracia real já" gerou uma onda muito forte de empoderamento, uma saída de gente às ruas, que não estava organizada em movimentos sociais, gente que não tinha experiência política prévia, em sua maioria. Depois de toda a manifestação, com todo esse clima, um grupo decidiu acampar na Puerta del Sol (em Madri) de maneira espontânea, no dia 15 de maio de 2011, como se tivessem catalizado a energia que estava organizada nessa manifestação e a mudassem para uma forma "acampada" de mobilização. A ação se replicou por todo o país, começou uma dinâmica entre praças e redes, que disseminou uma visão crítica na sociedade espanhola.
JC - O 15M completou cinco anos em 2016. Que balanço faz do acontecimento e de seus desdobramentos?
Toret - Como um novo tipo de movimento de organização em rede, o 15M transformou a política e a mentalidade de uma parte importante da população na Espanha. Houve enormes impactos em distintos níveis e dimensões. Mudou o senso comum da população em relação aos partidos políticos, pois um setor da população não se sentia representado pelos partidos. Depois, mudou a cena política. Abriu-se espaço para que emergissem novos movimentos, que vieram na onda do 15M, como o Podemos ou as candidaturas municipais, que passaram a governar oito das mais importantes cidades do País. O 15M abriu um ciclo. Há gente que diz que esse ciclo eleitoral foi o último (sob influência do 15M). Não sei, mas creio que mudou para sempre uma grande parte da cultura política e a mentalidade da sociedade, inclusive em nível internacional, porque o 15M influiu em outros movimentos, como a Nuit Debout, em Paris, que se inspiraram na experiência e conhecimento acumulados nestes cinco anos.
JC - Recentemente, ocorreram duas eleições na Espanha sem que nenhum partido conseguisse maioria parlamentar. Não era esperado que houvesse mais mobilização da população após o 15M?
Toret - Isso depende de quais as expectativas que avaliamos. Havia uma expectativa muito grande de que a coligação Unidos Podemos (formada pelos partidos Podemos, Esquerda Unida e outras siglas à esquerda) conseguiria a maioria do Parlamento. Unidos Podemos teve o resultado de 71, junto com a Esquerda Unida. Numa retrospectiva histórica, um grupo que não existia e que ganha 71 deputados em dois anos é incrível. Mas havia essa expectativa, por um lado, de superar o Psoe (Partido Socialista da Espanha) e ficar próximo ao PP (de orientação conservadora e que conseguiu o maior número de votos). Acredito que houve diversos erros na campanha, houve uma mudança historicamente muito potente. E também o Podemos estava muito bem nas pesquisas e não se deu conta de que havia uma força social poderosa e com muitíssimo dinheiro para desprestigiá-lo. A política do medo e também o Brexit (movimento pela saída da Grã-Bretanha) influenciaram negativamente. É normal. No Brasil, o PT levou muitos anos para chegar ao poder. O Podemos tem dois anos e já é a terceira força no Parlamento. Também creio que temos de fazer uma renovação não só no aspecto institucional, mas mudar a dinâmica social, o que ocorre nas cidades, nos movimentos... a mudança tem de ser mais holística, e não ficar apenas na parte eleitoral.
JC - Essa dificuldade deriva do sentimento de falta de representatividade que existe entre a população?
Toret - Isso existe em todo o mundo. Creio que isso deriva de uma crise da democracia representativa. A gente vive uma realidade interativa, e as instituições são monolíticas. Estamos acostumados a interagir com as pessoas mais fluidamente, porém, com as instituições públicas, a interação continua a ser muito difícil e analógica. Uma parte da população acreditava que o Podemos a representaria. Mas há gente como eu, que pensa que essa representação é problemática e que devemos encontrar canais mais diretos para que a população possa se expressar.
JC - Como é a experiência de democracia em rede realizada em cidades como Barcelona e Madri?
Toret - São duas experiências que se chamam Decide Madrid e Decide Barcelona, ambas baseadas em software livre. São plataformas em que a população pode propor, debater e votar. Em Madri, por exemplo, se uma proposta atinge 50 mil assinaturas, ela vai diretamente a plenário. Em Barcelona, existe um plano estratégico da cidade, partindo do programa de governo do Barcelona En Común (partido político formado para disputar a eleição municipal). Muitas daquelas propostas foram incorporadas às diretrizes de governo. Claro, são os primeiros resultados. Madri também começa experiências baseadas no Orçamento Participativo... estudamos a experiência aqui de Porto Alegre, porque é uma referência indispensável. Em Madri, a prefeitura tem uma plataforma digital, um sistema muito interessante para que os cidadãos possam decidir nos bairros, numa combinação analógica e digital...
JC - A participação presencial dos cidadãos continua tendo a mesma importância?
Toret - Falando sobre Barcelona, para nós, não se trata de opor o analógico e o digital. É trazer a internet e o presencial, juntos, e ver o melhor de cada um e como esse processo se retroalimenta melhor. E é aí que vemos a chave importante para a democracia do século 21. Como sintetizar as melhores experiências, pensando em um processo de participação que incorpore a interação entre elementos digitais e analógicos.
JC - Qual sua avaliação a respeito da saída do Reino Unido da União Europeia?
Toret - Minha avaliação é que a Europa está em uma crise muito braba. Por exemplo, a crise dos refugiados, é uma vergonha histórica para a Europa. É uma guerra na qual não se interviu para que parasse... é uma situação muito convulsa e complexa, e a Europa olhava para outro lugar. E nesse contexto de crise, que é um sintoma muito grande da crise dos refugiados, o Brexit soa como um exemplo de que a Europa não estaria no lugar certo, há a deslegitimação das instituições europeias. E o problema é que tampouco há um projeto forte de refundação da esquerda europeia. O Brexit levou também à confirmação do domínio da capacidade de influência da opinião pública pelos valores da extrema-direita, como o racismo...
JC - O surgimento do 15M e seus desdobramentos fizeram emergir uma força à esquerda, mas o que se vê com mais força atualmente é uma ascensão da extrema-direita...
Toret - Acredito que é necessário refundar um projeto constituinte para a Europa. Temos que ver se a esquerda acorda, porque a direita, sobretudo no Norte, está forte. Há um discurso que coloca o povo contra uma "casta" - que é um discurso parecido com o do Podemos, nessa parte antipolítica, mas com direções opostas. Se não há um projeto emancipador, surgirá um que seja conservador. E isso é um pouco a dificuldade que estamos enfrentando também. Há uma crise muito grande da esquerda, que é de onde surge o 15M. Ele surgiu, porque a esquerda está bloqueada. E há uma crise de projeto na esquerda. Na parte de tecnologia, por exemplo, a esquerda não tem nem ideia do que está passando, não compreende o mundo que está surgindo de maneira tão acelerada, neste e em muitos outros campos.
JC - Como é a situação dos partidos surgidos após o 15M? Como é a atuação do Ganyem (Ganhemos, em catalão)?
Toret - Houve o crescimento do Podemos, mas, ao mesmo tempo, nas cidades, ativistas sociais e gente do 15M, decidimos lançar as candidaturas municipalistas. Surgiu o Ganyem, que foi um nome adotado por muitos outros grupos de cidades espanholas. Era uma onda distinta do Podemos, mas que o incluía também, já que o Podemos decidiu não apresentar candidaturas municipais, pois seu objetivo eram as eleições nacionais. Curiosamente, o Ganhemos venceu nas eleições municipais; o Podemos, não obteve maioria parlamentar em nível nacional. Muitas candidaturas municipais foram lideradas por mulheres, que têm uma relação mais forte com a cidade, com os movimentos sociais locais. São coisas distintas, filosofias, práticas e ideias de poder distintas. O Podemos tenta hegemonizar todo o campo político; já em outros movimentos, temos uma visão distinta.
JC - Existe hoje uma aproximação maior do Podemos com a política tradicional, em sua opinião?
Toret - O Podemos tem uma visão mais inspirada no conhecimento que eles têm da América Latina. A experiência do Equador, da Bolívia, da Venezuela, dos quais há muitos elementos mesclados com a cena espanhola. Eles têm uma visão de construção nacional popular de esquerda. Essa não é a visão do municipalismo, que tem a tradição histórica da Espanha. O Podemos está entre o novo e elementos muito mais tradicionais, baseados na política estatal, muito voltada também na estratégia de televisão, de marketing... as candidaturas municipalistas têm outra dinâmica, mais vinculada aos movimentos sociais e à sociedade.
JC - Como enxerga o momento político atual no Brasil?
Toret - A situação é muito distinta (da Espanha), pois aqui (no Brasil) os movimentos de junho de 2013 acabaram virando à direita contra o governo de Dilma (Rousseff, PT), o impeachment, o golpe, que foi uma loucura. O PT, como experiência de transformação, acabou. Para que a esquerda dure, penso que ela não deve se associar ao PT, deve fazer outras coisas, mais do que brigar com o PT. Uma oportunidade muito interessante é a que está se abrindo nas eleições municipais, com uma dinâmica mais cidadã, com mais movimentos sociais e menos partidos. Essa relação entre candidaturas cidadãs e movimentos sociais tem que se opor à direita, que vai mobilizar muita gente também... essa é a chave para explorar uma saída possível à situação complexa do Brasil.

Perfil

Ativista do movimento 15M, que, em 15 de maio de 2011, acampou na praça Puerta del Sol, em Madri, Javier Toret Medina é formado em Psicologia pela Universidade de Málaga. Atualmente, é pesquisador dos novos movimentos sociais em rede, reunindo aspectos filosóficos, políticos e tecnológicos destas mobilizações. É participante do grupo Tecnopolítica, do Internet Interdisciplinary Institute (IN3) da Universitat Oberta de Catalunya (UOC), coordenado pelo sociólogo espanhol Manuel Castells, que se dedica ao estudo de movimentos como o próprio 15M, a Primavera Árabe, o movimento Occupy e o junho de 2013 no Brasil. Também coordenou a publicação coletiva do livro: "Tecnopolítica: a potência das multidões conectadas". Como membro da iniciativa de cidadãos #BarcelonaEnComún, criada para a disputa das eleições municipais na Espanha, fez a coordenação de redes sociais da campanha eleitoral de Ada Colau à prefeitura de Barcelona em 2015, candidatura que saiu vitoriosa.