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Ferrovias

- Publicada em 10 de Julho de 2016 às 21:12

Nos trilhos, País expõe desperdício

Inauguração de parte da ferrovia, em 22 de maio de 2014, virou palco eleitoral e foi celebrada, porque reduziria custo do frete em 30%, e geraria negócios estimados em US$ 12 bilhões

Inauguração de parte da ferrovia, em 22 de maio de 2014, virou palco eleitoral e foi celebrada, porque reduziria custo do frete em 30%, e geraria negócios estimados em US$ 12 bilhões


VALEC/DIVULGAÇÃO/JC
Com um atraso secular em suas metas de expansão e de investimentos em ferrovias, há mais de dois anos, o Brasil se dá ao luxo de simplesmente abrir mão do uso de uma ferrovia pronta e moderna, uma estrutura que já custou mais de R$ 4,2 bilhões aos cofres públicos e que poderia ter iniciado uma revolução no mapa logístico nacional.
Com um atraso secular em suas metas de expansão e de investimentos em ferrovias, há mais de dois anos, o Brasil se dá ao luxo de simplesmente abrir mão do uso de uma ferrovia pronta e moderna, uma estrutura que já custou mais de R$ 4,2 bilhões aos cofres públicos e que poderia ter iniciado uma revolução no mapa logístico nacional.
A revolução não veio. No lugar dela, o que se vê no trecho de 855 quilômetros da Ferrovia Norte-Sul, entre Palmas (TO) e Anápolis (GO), é o retrato do desperdício e da irresponsabilidade com o bem público.
Na manhã de 22 de maio de 2014, a conclusão desse trecho da Norte-Sul foi motivo de comemoração e virou ato eleitoral. Na ocasião, a presidente afastada Dilma Rousseff esteve em Anápolis, passeou numa locomotiva e inaugurou o eixo central da "coluna vertebral" do Brasil, empreendimento que reduziria os custos de frete em pelo menos 30% e poderia gerar negócios da ordem de US$ 12 bilhões por ano, ao mudar a cara do transporte de carga e impulsionar a arrecadação de impostos.
Desde então, nem meia dúzia de comboios de carga passou pelo trecho. No final do ano passado, alguns vagões carregados de 21 mil toneladas de farelo de soja subiram por ali. Outras 18 locomotivas da empresa de logística VLI, que pertence à mineradora Vale, usaram o traçado para acessar a parte superior da Norte-Sul, onde a VLI já atua há quase 10 anos, entre Palmas e Açailândia (MA). Trata-se de um nada se comparado ao potencial efetivo da malha.
Para se ter uma ideia, só os novos terminais que a VLI acaba de erguer na Norte-Sul, no município de Porto Nacional (TO), têm capacidade de movimentar 2,6 milhões de toneladas por ano. Em Anápolis, um parque logístico já está ocupado por dezenas de grandes empresas que aportaram bilhões de reais no polo, mas ainda espera-se o dia em que a circulação dos trens passará a ser rotina sobre os seis ramais do pátio da Norte-Sul, preparado para o transbordo da carga.
O diretor de operações da Valec, Marcus Almeida, afirma que, gradativamente, o trecho passará a ser utilizado. "Já fizemos algumas viagens no trecho. Entre agosto e setembro, mais 45 mil a 50 mil toneladas de farelo devem passar pela ferrovia."
Para o diretor de engenharia da Valec, Mário Mondolfo, é preciso considerar que a ferrovia tem "natureza diferente" das rodovias. "Ela precisa maturar. A carga tem de começar a descobrir a ferrovia. Não são seis meses depois que teremos 20 vagões de trens passando por lá", argumenta.
O martírio dos projetos ferroviários não se limita aos trechos prontos que seguem subutilizados. Na Norte-Sul e na Ferrovia Oeste-Leste (Fiol), na Bahia, os escândalos financeiros circulam em alta velocidade sobre o traçado de obras sem data para serem entregues.
Um olhar sobre as contas e contratos que forjaram cada metro de trilho lançado nesses dois projetos pela Valec ajuda a enxergar a dimensão do abismo financeiro em que se converteram essas obras. Os dados da Valec, estatal responsável pelas ferrovias, apontam que essas duas obras já acumulam um total de 123 termos aditivos até agora.
Somados, os dois projetos já tiveram seus orçamentos ampliados em mais de R$ 4,8 bilhões, entre reajustes contratuais, correções de projetos de engenharia, constantes paralisações e esquemas de corrupção. É dinheiro mais do que suficiente para construir do zero outro trecho da Norte-Sul.
O trecho Sul da Norte-Sul, que teve as obras anunciadas em meados de 2007, quando o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva lançou o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), viu seu preço saltar de R$ 2,7 bilhões para R$ 5,1 bilhões, segundo a estimativa mais recente. Previsto para ser entregue em dezembro de 2012, o trecho teve sua conclusão prorrogada novamente, dessa vez para julho de 2017.
Na Fiol, as obras da malha de 1 mil quilômetros entre os municípios de Barreiras e Ilhéus, inicialmente avaliadas em R$ 4,2 bilhões, agora chegam em R$ 6,4 bilhões. Ignorada no plano de concessões do governo, a Fiol tem sido encarada como uma "dor de cabeça" quando o assunto é discussão sobre investimentos, apesar de o projeto já ter dragado R$ 3 bilhões em recursos públicos. Sobre os 500 quilômetros restantes que ligariam a ferrovia à Norte-Sul, em Figueirópolis (TO), o que existe até hoje são pilhas de papéis, nada mais.
Lançada pelo presidente José Sarney, no anos 1980, a Norte-Sul atravessou duas décadas de abandono e passou por dois governos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso tendo avançado apenas 215 quilômetros. Sua retomada ocorreu em 2007, quando Lula reativou a Valec e trouxe para o comando José Francisco das Neves, conhecido como Juquinha.
Em 2011, Juquinha chegou a ser preso pela Polícia Federal após investigações que apuravam desvio de recursos e superfaturamento nas ferrovias. No mês passado, o Ministério Público Federal (MPF) em Brasília pediu a condenação de Juquinha e de Luiz Raimundo Carneiro de Azevedo, outro ex-presidente da estatal. Mais seis pessoas também foram alvos da denúncia, por causa de desvios de R$ 23,1 milhões dos cofres da empresa.

Falta de definição do modelo anula anos de planejamento

Inauguração de parte da ferrovia, em 22 de maio de 2014, virou palco eleitoral e foi celebrada, porque reduziria custo do frete em 30%, e geraria negócios estimados em US$ 12 bilhões

Inauguração de parte da ferrovia, em 22 de maio de 2014, virou palco eleitoral e foi celebrada, porque reduziria custo do frete em 30%, e geraria negócios estimados em US$ 12 bilhões


VALEC/DIVULGAÇÃO/JC
O que levou a Ferrovia Norte-Sul a ter um trecho de 855 quilômetros de extensão pronto há mais de dois anos, mas praticamente sem uso até hoje, está diretamente relacionado às indefinições sobre qual modelo de concessão será utilizado pelo governo para conceder o trecho.
Foram gastos mais de quatro anos em estudos e contratações de consultorias especializadas para montar um modelo aberto e concorrencial do uso da malha. O modelo conhecido como "open access" era defendido ferrenhamente por técnicos da Valec e pela presidente afastada Dilma Rousseff, porque prometia quebrar o monopólio nas antigas outorgas de ferrovias, levando mais competição para o setor.
A ideia, basicamente, era abrir a ferrovia para várias empresas de logística, que comprariam da Valec a capacidade de transporte da malha, prestando serviço para quem quisesse transportar suas cargas. A estratégia chegou a atrair interessados, mas o governo, pressionado pela necessidade de fazer caixa, resolveu rasgar o que passou anos planejando.
Assim, voltou ao tradicional modelo já explorado pelos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva: a oferta para um único operador, que paga um valor de outorga em leilão para se tornar o dono do trecho. Foi o que Lula fez em 2007, por exemplo, com a mineradora Vale, que desembolsou R$ 1,4 bilhão para ter exclusividade na operação de um trecho de 719 quilômetros da Norte-Sul, entre os municípios de Palmas (TO) e Açailândia (MA), onde a malha se conecta à Estrada de Ferro Carajás e segue até o porto de Itaqui, no Maranhão.
Apesar de ter definido o retorno para a "concessão vertical" das ferrovias, ainda não estão claras quais serão as condições em que os trechos prontos - e aqueles próximos de serem concluídos - serão repassados para a iniciativa privada. Até o ano passado, o governo havia decidido que as novas concessões exigiriam a construção de novos trechos. Neste ano, o plano foi abandonado.
Recentemente, o governo anunciou outra alternativa, desta vez vinculando a concessão da Norte-Sul a um terminal portuário em Barcarena, no Maranhão. "O futuro das ferrovias e de todo o setor depende da clareza dessas regras e da definição de um marco regulatório. A cada dia, fala-se de uma alternativa diferente", comenta Carlos Campos, coordenador de infraestrutura do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). "Essa situação continua a reproduzir um clima de insegurança jurídica grande entre os investidores. Enquanto essa situação não se resolver, seguiremos com ferrovias paradas."

Entres os países em desenvolvimento, o Brasil é o que menos investe em transporte ferroviário

Inauguração de parte da ferrovia, em 22 de maio de 2014, virou palco eleitoral e foi celebrada, porque reduziria custo do frete em 30%, e geraria negócios estimados em US$ 12 bilhões

Inauguração de parte da ferrovia, em 22 de maio de 2014, virou palco eleitoral e foi celebrada, porque reduziria custo do frete em 30%, e geraria negócios estimados em US$ 12 bilhões


VALEC/DIVULGAÇÃO/JC
A estratégia do governo federal de apresentar as concessões na área de infraestrutura como a tábua de salvação da economia e da retomada do emprego corre riscos de se frustrar. A avaliação é do coordenador de infraestrutura do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Carlos Campos. Entre os países em desenvolvimento, afirma Campos, o Brasil tem sido o que menos investe nesses empreendimentos. "O que temos investido em transportes fica em torno de R$ 29 bilhões e R$ 30 bilhões por ano, incluindo os setores público e privado. Em 2015, ficou em R$ 25 bilhões. Isso representa 0,6% do PIB. Esse número fala por si", comenta.
"Os países em desenvolvimento que concorrem com Brasil, como Rússia, Índia, Coreia do Sul, Chile e Vietnã, estão investindo uma média de 3,7% do PIB em transporte." A timidez dos investimentos não é o único problema, diz o especialista. É preciso lidar ainda com a falta de regularidade e a demora com que esses projetos são implementados. "A forma esporádica como esse processo é implementado dificulta os resultados. Além disso, o País já concedeu seus melhores ativos em áreas estratégicas de concessão, como rodovias e aeroportos. O que sobra atrai menor interesse. Por isso, eles acabam sendo insuficientes para ter impacto no crescimento econômico ou mesmo no volume de emprego. É um problema de magnitude, o setor não é capaz de dinamizar a economia."
O governo chegou a anunciar que faria a concessão da Ferrovia Norte-Sul neste ano, mas o ministro dos Transportes, Portos e Aeroportos, Maurício Quintella, já indicou que são mínimas as possibilidades de isso ocorrer e que o leilão do trecho deve ficar mesmo para 2017. Já a Ferrovia de Integração Oeste-Leste (Fiol) sequer chegou a entrar no pacote de privatizações anunciado pelo Palácio do Planalto.
Iniciadas há praticamente 10 anos, as ferrovias federais já passaram por duas edições do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), duas edições do Programa de Integração em Logística (PIL) e, agora, sob comando do governo de Michel Temer, são inseridas no "Programa Crescer". Uma década depois, não se sabe ainda em que condições serão concedidas, ou mesmo quando terão parte de seus trechos concluída.
Ainda assim, não faltam interessados. Recentemente, a estatal russa RZD, uma das maiores companhias ferroviárias do mundo, percorreu o trecho pronto da Norte-Sul, entre Palmas (TO) e Anápolis (GO), para analisar as condições da ferrovia e seu potencial. Chineses também conversaram com o Ministério dos Transportes sobre o possibilidade de assumir a Fiol.