Uma ameaça que vinha preocupando os usuários da internet foi proibida há exatamente 20 dias pelo Decreto nº 8.771, de 11 de maio de 2016, o qual atualiza a Lei nº 12.965, de abril de 2014, conhecida como Marco Civil da Internet. A medida foi uma das últimas decisões tomadas pela então presidente Dilma Rousseff, afastada do cargo. Além de exigir tratamento isonômico à prestação de serviços de rede, o decreto especifica as exceções à neutralidade de rede. A partir dele, a discriminação ou a degradação de tráfego se tornam "medidas excepcionais" que só podem decorrer de requisitos técnicos indispensáveis ou da priorização de serviços de emergência.
Na prática, isso proíbe o traffic shaping, a modalidade que prioriza o tráfego de dados de acordo com os sites ou serviços que o cliente usa. Por exemplo, não é possível cobrar mais pelo uso de um determinado serviço que utilize maior velocidade da rede, como a Netflix. Agora, se duas pessoas possuem a mesma franquia de internet, ambas têm direito de acessar quaisquer serviços, sejam eles pesados ou não. "As operadoras fizeram um esforço para que essa parte do decreto não passasse. Não é um negócio muito bom para elas, mas é muito bom para o usuário final, porque permite acesso ao serviço pelo qual ele paga de forma integral. O limite passa a ser a contratação. Sabe-se que as operadoras faziam essa degradação para conseguir vender pacotes especiais", explica o presidente da Comissão de Direito da Tecnologia da Informação da seccional gaúcha da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/RS), Filipe Mallmann.
Como exceção, estão questões de segurança, como restrição ao envio de mensagens em massa e controle de ataques de negação de serviço e situações excepcionais de congestionamento de redes, como rotas alternativas em casos de interrupções da rota principal e em situações de emergência. Para Mallmann, a probabilidade de esses casos ocorrerem é baixa. "Seria em caso de catástrofe natural, por exemplo, quando o governo poderia minimizar a capacidade para outras aplicações para mandar uma mensagem ao cidadão. Mas não vejo isso acontecendo na prática", pondera o advogado.
Outra questão que causa um leve franzir de cenho é a privacidade. Para Mallmann, é preciso ter cuidado, uma vez que a privacidade individual pode ser abalada de acordo com o entendimento que se der com o Marco Civil. "O que se quer é que autoridades administrativas tenham acesso às informações dos usuários, mas não fica claro quais são essas autoridades. Acredito que, se preciso dos dados de alguém, tenho que fundamentar o pedido e submeter ao exame de um juiz, e ele determinará se os dados deverão ser exibidos, e não qualquer autoridade, como um policial", argumenta. No entanto, o advogado admite que, da maneira como está escrito o decreto, há uma certa segurança quanto à privacidade. "Eu sou um pouco catastrófico e sempre acho que devemos nos preocupar antes", calcula.
O presidente da Comissão de Propriedade Intelectual da OAB/RS, Rodrigo Azevedo, é mais otimista. Para ele, o decreto tem dois propósitos: assegurar a liberdade de expressão, de navegação e do uso da rede e oferecer o mínimo de regulamentação para permitir que se possa apurar a responsabilidade quando a rede é mal utilizada. "Na medida em que o Judiciário ficou como grande termômetro da revelação ou não de conteúdo, de quando a regra da privacidade vá ser quebrada, eu não vejo como ameaça o Marco Civil da Internet ou a regulamentação de liberdade de expressão ou da privacidade. Ao contrário, vejo como uma ferramenta que vai ajudar a resguardá-las", acredita.
Provas escritas são obtidas com facilidade na era digital
No que tange às violações de privacidade, o advogado Filipe Mallmann lembra que o Marco Civil da Internet obriga a retirada de conteúdo ofensivo mediante notificação judicial, salvo em casos de nudez ou de crime hediondo, quando a remoção é obrigatória a partir do momento em que o provedor toma conhecimento. "Antes, se um advogado fosse procurado para resolver uma questão dessas, ele mandava uma notificação extrajudicial e o provedor já retirava. Hoje, é obrigatória a ordem judicial."
Advogada especialista em Direito Digital, Patrícia Peck Pinheiro afirma que nunca houve tanta possibilidade para uma vítima recorrer ao Judiciário, uma vez que há muitas provas digitais e testemunhas. "Vivemos a era da prova documentada por escrito nos meios digitais. Antes, as pessoas que não tinham provas não conseguiam testemunhas. Hoje, as próprias pessoas se manifestam nas redes sociais. O que a vítima precisa fazer, de imediato, é um registro da prova", comenta Patrícia. No escritório onde trabalha, em São Paulo, os casos de violações na internet aumentaram 300% de 2014 para 2015. A maioria dos casos são resolvidos na Justiça comum e as indenizações podem variar de R$ 10 mil a R$ 30 mil.
Para Patrícia, estabelecer o limite da liberdade de expressão é uma das questões mais importantes para a sociedade. "A liberdade tem um limite, que envolve comportamento ético. Essa ética exige que a liberdade de um não fira a liberdade de outro. Nosso maior limitador é o próprio conjunto moral e ético", pensa. Mas ela também acredita que a sociedade só conseguirá se organizar de forma livre com segurança se houver educação. "Quando isso acontecer, será possível manifestar opiniões sem ofender. É possível criticar sem praticar crimes. Sem educação, a ferramenta tecnológica vai aumentar o número de incidentes, de ilícitos e de agressões", prevê.
Além de estabelecer os direitos dos usuários, o decreto que atualiza o Marco Civil também disponibiliza orientações para os provedores e sites da internet. O advogado Rodrigo Azevedo explica que os provedores são obrigados a guardar os registros de acesso às aplicações da internet por seis meses, segundo o artigo 15 da Lei nº 12.965. Registros de serviços de conexão, por sua vez, devem ser guardados por um ano.
"Se alguém alegar que o cartão de crédito foi fraudado, por exemplo, é preciso colaborar com as investigações, dizendo qual era o IP da máquina que realizou a conexão específica. Para apurar uma ofensa ou uma fraude, é possível notificar o provedor, mediante ordem judicial, e obter a identificação da pessoa por trás da transação", comenta Azevedo.