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Entrevista especial

- Publicada em 18 de Outubro de 2015 às 22:09

Para Gabril, o acesso à informação é um marco para o Brasil

"Depois que os recursos públicos saíram para corrupção, dificilmente eles voltam"

"Depois que os recursos públicos saíram para corrupção, dificilmente eles voltam"


fotos: MARCELO G. RIBEIRO/JC
A Lei de Acesso à Informação (LAI), promulgada em 2011, deu ao Brasil a possibilidade efetiva de exercer controle social sobre ações da gestão pública. A constatação é do contador Pedro Gabril, que atuou como auditor-geral do Estado no governo Germano Rigotto (PMDB, 2003-2006) e que agora preside o conselho consultivo do Observatório Social de Porto Alegre (Ospoa), entidade da sociedade civil que realiza o controle das contas públicas.
A Lei de Acesso à Informação (LAI), promulgada em 2011, deu ao Brasil a possibilidade efetiva de exercer controle social sobre ações da gestão pública. A constatação é do contador Pedro Gabril, que atuou como auditor-geral do Estado no governo Germano Rigotto (PMDB, 2003-2006) e que agora preside o conselho consultivo do Observatório Social de Porto Alegre (Ospoa), entidade da sociedade civil que realiza o controle das contas públicas.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Gabril diz que as atenções do Ospoa estão voltadas à análise de licitações e contratos do poder público. "A parte do orçamento para contratações, que gira em torno de 40% do orçamento", é mais suscetível a desvios, explica. Para ele, essa fiscalização visa a principalmente prevenir o extravio de dinheiro público.
Segundo Gabril, apesar da disponibilidade de dados facilitada pela internet e de ferramentas de participação social referenciais, como o Orçamento Participativo de Porto Alegre, é necessário que o cidadão faça o efetivo acompanhamento das obras e ações de governo. "O povo escolhe, mas depois não fiscaliza se foi pago o previsto pelo orçamento, ou três vezes mais", diz.
Jornal do Comércio - Qual foi o impacto da Lei de Acesso à Informação no controle das contas públicas no Brasil?
Pedro Gabril - A lei foi o marco definitivo para clarear a possibilidade do controle social no Brasil. Para que qualquer país tenha controle social, para que possa atuar, há requisitos fundamentais: democracia em primeiro lugar, uma coleção de normas que deixe bem clara a obrigação do governo em relação à transparência, o que o governo tem que entregar de dados à sociedade, o direito que o cidadão tem de acessar esses dados e como eles serão disponibilizados. No Brasil, até o ano 2000, estava muito fraca essa coleção de normas, mas a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) deixou claro que o direito, em todo esse processo, é que os cidadãos e as organizações da sociedade civil tenham todas as informações, mas ainda faltavam algumas regras que a Lei de Acesso à Informação veio trazer. Um dos dispositivos da LAI diz que a regra é a transparência, o sigilo é exceção. Então, o governo só não entrega à população aquilo que representa, justificadamente, risco à segurança para alguma investigação. Então, 95% das informações necessárias para fazer o controle social antes que os problemas aconteçam estão na internet. Os 5% que faltam temos direito de pedir, com base na lei, e o governo tem o prazo máximo de 20 dias para entregar.
JC - Em cumprimento à LAI, os dados da administração pública estão disponíveis. Mas o cidadão sabe buscar e analisar esses dados? Além disso, existe o interesse da população em buscar isso?
Gabril - Me interessei tanto por esse assunto que, em 2008, entrei no mestrado da Pucrs em Ciências Sociais para estudar as organizações da sociedade civil, o comportamento da sociedade e a disposição do governo em colocar esses dados e se existia, efetivamente, a accountability. Ela não significa só a prestação de contas, ela se completa quando há a tomada destas contas. Então, os dados são todos disponíveis, mas tem que haver a utilização desses dados pelo cidadão. Sou otimista e acho que está chegando o momento em que a sociedade civil desperta para isso. Mas falta muito ainda. A conclusão a que cheguei na pesquisa foi que, no final de 2009, antes da LAI, nem os governos tinham interesse em abrir os dados e incentivar a consulta, nem os cidadãos estavam interessados no tema. De lá para cá, com todas essas operações da Polícia Federal, os casos do mensalão e da Operação Lava Jato, parece que as pessoas estão despertando para esse uso. Falta muito ainda.
JC - Os dados são compreensíveis para o cidadão?
Gabril - Poderia ser melhor, mais fácil. Mas já temos os portais de transparência com uma qualidade muito boa. O de Porto Alegre, por exemplo. Mas o povo tem que entrar. Por enquanto, podemos pedir que os órgãos públicos comecem a colocar as informações de forma mais amigável, mas já melhorou muito em relação ao que era em 2010 ou 2011, antes da lei.
JC - Qual é o tipo mais comum de irregularidade nas contas analisadas pelos Observatórios Sociais?
Gabril - É com licitações e a dispensa de licitações. A filosofia dos observatórios é atuar antes que os recursos sejam desviados. A gente sabe que, depois que os recursos saíram dos cofres públicos para contas inadequadas, de desvios, fraudes, corrupção, dificilmente voltam. Vai para a Justiça, e a gente sabe como é...
JC - Mas isso é intencional, ou é falta de preparo?
Gabril - É que a parte do orçamento que é executada em decorrência de contratações, que gira em torno de 40% do orçamento, é mais suscetível a desvios. Isso foi a conclusão. Os maiores desvios não acontecem em folha de pagamento, por exemplo. As folhas tomam geralmente 50% do orçamento. Se há algum desvio, é difícil, e é no varejo. Tem que ter conluio com o funcionário que recebeu. Outra parte, cerca de 10% são despesas que não têm como desviar, que são luz, água, telefone, isso também não se presta para grandes problemas e grandes corrupções. Então, os 35% a 40% do orçamento restante, que são as contratações na educação, uniformes escolares, alimentação, transporte e material, tem maior possibilidade de desvios.
JC - Isso nas administrações municipais?
Gabril - Nas estaduais também. Na área da saúde, ou obras e serviços de engenharia e terceirizações, tanto contratações de consultoria, como grandes contratos de terceirização de mão de obra para serviço de vigilância, portaria... É por isso que centramos esforços no acompanhamento dos contratos da administração pública. Os contratos são precedidos por licitações, via de regra.
JC - Isso acaba ficando no cerne dos grandes escândalos.
Gabril - Exatamente.
JC - Como é a receptividade dos gestores quando uma irregularidade é encontrada pelo Observatório?
Gabril - Se o administrador não atende (ao aviso do OS), o observatório manda o assunto formalmente para Ministério Público, Tribunal de Contas e Câmara Municipal. É por isso que tem eficácia. Raramente chega a esse ponto de ter que mandar, e os gestores sabem. Um exemplo marcante é do primeiro Observatório Social brasileiro, de Maringá (PR). A compra de medicamentos é uma área fundamental. Numa aquisição de comprimidos de AAS, quando saiu o julgamento da licitação e ela foi para a ata, a pessoa que digitou a ata, com os valores que foram para o contrato, colocou R$ 0,09 em vez de R$ 0,009 por comprimido.
JC - Foi um erro?
Gabril - Sim, um erro que foi para o contrato. Quando o observatório viu isso, a prefeitura já tinha comprado 750 mil unidades e pago R$ 60 mil a mais. Então, o observatório mandou a carta, o prefeito agradeceu e viu que era um trabalho importante para a prefeitura. A empresa vencedora da licitação foi chamada para corrigir o problema, e a empresa devolveu o dinheiro.
JC - O que sua experiência na Cage trouxe ao Observatório?
Gabril - Foi fundamental para me voltar a essa questão de controle social. Lá, tive a visão ampla da administração pública, direta e indireta, da parte do orçamento que é executado pelas secretarias, dentro do ente estatal, e a parte das autarquias e fundações, que têm lá os seus orçamentos e a sua autonomia administrativa-financeira. A Cage tem a grande vantagem de ter todos os seus agentes públicos concursados. Nem o dirigente máximo pode ser nomeado. A Cage é um dos órgãos de controle interno estadual do Brasil mais antigos. Foi criada em 1948.
JC - A do Rio Grande do Sul?
Gabril - Sim, tem uma tradição, e posso garantir que tem independência para trabalhar. Há uma norma estadual que exige que os relatórios emitidos pelo órgão sejam enviados simultaneamente para o gestor, que está sendo controlado, e para o Tribunal de Contas. Hoje, é o órgão de controle interno dos Três Poderes, do Ministério Público e do TCE. Ela está no Executivo, mas tem atuação em todos os Poderes. Isso dá absoluta autonomia para trabalhar. Posso garantir que nunca nenhum de nossos auditores foi pressionado para mudar relatório para deixar de apontar alguma coisa. E essa experiência me deu o conhecimento necessário para administração pública e me fez perceber que era necessária essa interação com a sociedade para se completar o mais importante, que é o controle prévio e concomitante. O controle a posteriori não tem eficácia nenhuma. Os problemas já aconteceram.
JC - É importante para denunciar, mas não previne...
Gabril - Exatamente.
JC - No contexto estadual, em retrospecto, a falta de controle ou proximidade da população em relação às contas públicas contribuiu para que a gente atingisse um déficit tão grande?
Gabril - Provavelmente, há ligação. Mas o déficit é uma questão matemática, é pelo o desrespeito à LRF, que exige que não se gaste mais do que se arrecada. Então, o problema que causou o déficit foi a gestão. Não iria interferir diretamente se a população estivesse acompanhando a adequação da execução orçamentária, enfim, mas se o governo continuasse gastando mais do que arrecada, o déficit seria materializado de qualquer forma.
JC - A participação da população, por meio de ferramentas adequadas, ajuda no controle e promove intervenção positiva na administração pública?
Gabril - Se não acreditasse nisso, eu não estaria fazendo parte do Observatório Social. Só a percepção dos gestores e dos fornecedores de que há os olhos do dono do empreendimento pois prefeitura, Estado e União são grandes empreendimentos, cujos donos somos nós , de que há um Observatório Social e nós estamos acompanhando as licitações, a folha de pagamento, as diárias, os custos, os cargos, gera internamente grandes cuidados. Não só do primeiro escalão, mas até das pessoas que cuidam das rotinas operacionais. Muitos problemas acontecem, por erro ou até fraude, lá no terceiro ou quarto escalão, e o prefeito nem fica sabendo, mas vai ter que responder ao Tribunal de Contas. Qualquer movimento nesse sentido impacta positivamente a qualidade da gestão pública. E com os observatórios sociais, que têm uma atuação permanente, é possível sentir a melhoria na qualidade na comparação de um ano para o outro.
JC - O senhor acha que o cidadão deveria estar mais presente nas tomadas de decisão?
Gabril - Tem que participar, e Porto Alegre é um exemplo. Estive, no mês passado, fazendo, pela quarta vez, o Caminho de Santiago de Compostela. Lá, a gente tem contato com pessoas do mundo todo. Em pelos menos três oportunidades, dos 15 dias caminhando, quando eu dizia que era de Porto Alegre, me citavam a questão da participação. A cidade é notória pelo Orçamento Participativo. É muito importante, isso é uma fase do planejamento da gestão pública. Na fase de planejamento, é importante a participação do cidadão, mas os observatórios entram na execução e no acompanhamento das obras que foram previstas no OP. Na minha pesquisa de mestrado, também levantei que o povo participa, escolhe, mas depois não fiscaliza se aquele orçamento, aprovado três anos atrás, realmente foi pago o previsto, ou três vezes mais. O controle da execução do OP é ineficiente. Fica todo mundo feliz que foi feita a rua, a praça, mas o controle de quanto custou, quem foi contratado, como foi contratado... não havia controle social sobre o emprego de recursos.
JC - Qual seria o próximo passo depois da LAI?
Gabril - O uso dessas informações, que ainda é bem ineficiente. Não adiantaria essa coleção de normas necessárias para a prática do controle social há 20 anos, já que não conseguiríamos acessar a internet, pois o acesso fácil às informações faz parte dessas normas. Outro requisito importante é a participação, e isso ainda está faltando. O Brasil já tem instrumentos suficientes para que se faça quase, como na Grécia antiga, uma democracia direta. A participação no planejamento do governo, no Plano Plurianual no primeiro ano de governo, é muito possível participar pela internet se o povo quiser. O governo pode abrir e mostrar o que está fazendo, e os cidadãos podem votar no que querem que seja feito. É muito fácil.

Perfil

Pedro Gabril Kenne da Silva, 61 anos, nasceu em Camaquã. Graduado em Ciências Contábeis pela Universidade Federal de Santa Maria, em 1981, ingressou no Tesouro Estadual como agente fiscal em 1986, onde passou a atuar na Contadoria e Auditoria-Geral do Estado (Cage). No órgão, chegou a contador e auditor-geral do Estado em 2003, onde permaneceu até 2006, ano em que foi nomeado secretário de Estado da Administração e Recursos Humanos no governo de Germano Rigotto (PMDB). Em 2007, passou também pela presidência da Companhia de Processamento de Dados do Rio Grande do Sul (Procergs), no governo Yeda Crusius (PSDB). É mestre em Ciências Sociais pela Pucrs e tem especialização em Auditoria e Finanças Governamentais pela Ufrgs. Atualmente, além de atuar como presidente do conselho consultivo do Observatório Social de Porto Alegre (Ospoa) e membro do conselho superior do Observatório Social do Brasil, é vice-presidente de relações institucionais do Conselho Regional de Contabilidade e professor no curso de pós-graduação em auditoria e finanças governamentais da Ufrgs.