Corrigir texto

Se você encontrou algum erro nesta notícia, por favor preencha o formulário abaixo e clique em enviar. Este formulário destina-se somente à comunicação de erros.

DIREITOS HUMANOS

- Publicada em 18 de Outubro de 2015 às 22:17

Hospital Colônia Itapuã: a morada dos mortos em vida

Pórtico onde se lê 'Nós não caminhamos sós' separa os portadores da doença dos pacientes psiquiátricos

Pórtico onde se lê 'Nós não caminhamos sós' separa os portadores da doença dos pacientes psiquiátricos


JOÃO MATTOS/JC
Os 60 quilômetros que separam o Centro de Porto Alegre do Hospital Colônia Itapuã se tornam mais longos à medida em que a distância entre os dois pontos encurta. Nas proximidades do hospital, a estrada, cercada de vegetação mal aparada, é de chão batido. Ao final do trajeto, à esquerda, pulsa uma civilização à parte, que já teve prefeitura, delegacia e cadeia. Deixando-a longe dos olhos, fica mais fácil esquecer das 27 pessoas que continuam na instituição, portadoras da hanseníase, doença que os estigmatiza e praticamente os impede de conviver em sociedade.
Os 60 quilômetros que separam o Centro de Porto Alegre do Hospital Colônia Itapuã se tornam mais longos à medida em que a distância entre os dois pontos encurta. Nas proximidades do hospital, a estrada, cercada de vegetação mal aparada, é de chão batido. Ao final do trajeto, à esquerda, pulsa uma civilização à parte, que já teve prefeitura, delegacia e cadeia. Deixando-a longe dos olhos, fica mais fácil esquecer das 27 pessoas que continuam na instituição, portadoras da hanseníase, doença que os estigmatiza e praticamente os impede de conviver em sociedade.
Na Idade Média, os leprosos andavam com os rostos cobertos por um capuz, munidos de um cajado e um sino para avisar as "pessoas saudáveis" da sua chegada. Já naquela época, andavam à margem da sociedade. Eram exilados e declarados mortos em vida, ritual que incluía o enterro simbólico em um caixão. Em seguida, o doente se erguia, desolado, e caminhava em direção ao leprosário - a derradeira sepultura. Eram afastados da família e as mulheres, se engravidassem, eram separadas do filho imediatamente após o parto. No entorno dos leprosários, geralmente, ficavam rios para que, em caso de fuga, os doentes se afogassem. Crucial, apenas, era mantê-los afastados da população.
Os primeiros registros da doença, então chamada de lepra, aparecem na Bíblia e datam de 4 mil anos antes de Cristo. Estudiosos apostam que o continente asiático tenha sido o berço da enfermidade, que chegou às Américas trazida pelos colonizadores e imigrantes europeus e escravos africanos. Por muito tempo, a pessoa que a contraísse era vista como pecadora, uma vez que a lepra era considerada um castigo divino. Tratava-se de uma verdadeira sentença de morte social. Foi somente no século XV que a responsabilidade pelo diagnóstico foi retirada das mãos da Igreja Católica, que até então decidia o que fazer com os doentes, e entregue à Medicina.
Quase 400 anos depois, em 1873, o médico norueguês Gerhard Henrick Hansen identificou o bacilo Mycobacterium leprae, responsável pela doença. A descoberta foi um marco, uma vez que estabeleceu que o paciente não estava pagando, afinal, por pecados cometidos em vida. A lepra, agora chamada de Mal de Hansen ou hanseníase, passou a ser considerada altamente contagiosa e incurável. A partir daí, estudos foram realizados até que a cura da enfermidade fosse descoberta, nos anos de 1970. Hoje, a hanseníase é tratada com medicamentos como dapsona, rifampicina e clofazimin, a chamada poliquimioterapia. Finalmente, em 1987, o médico venezuelano Jacinto Convit elaborou uma vacina contra a doença.

Mesmo curável, doença pode causar graves sequelas

Pacientes que ainda habitam o local moram em residências compostas por 11 casas geminadas

Pacientes que ainda habitam o local moram em residências compostas por 11 casas geminadas


JOÃO MATTOS/JC
Apesar de já estarem curados e não oferecerem mais riscos de contágio, as vítimas da hanseníase sofrem com sequelas durante a vida toda. Ane Simões, dermatologista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, explica que a doença afeta ou zera a sensibilidade do corpo. "As pessoas se machucam, se queimam e, por vezes, desenvolvem infecções sérias nos ossos. Isso acarreta perda ou atrofia de membros. O desenvolvimento de cegueira, úlcera e reações a processos inflamatórios também são frequentes enquanto a doença está ativa", relata.
Hoje, é raro que o paciente precise ter algum membro amputado, uma vez que existe acompanhamento e tratamento para as sequelas. "O cenário da doença mudou. Ninguém sabe quem está contaminado, as pessoas convivem normalmente. O próprio contágio da doença é muito raro, é preciso anos de convivência com a pessoa, por isso que era muito comum dentro das famílias", explica a dermatologista. Antigamente, conta Ane, as pessoas se apavoravam com a possibilidade de contágio, pois não havia cura para o mal. "Começaram a isolar os pacientes, porque achavam que só de ficar perto, de tocar, já iam se contaminar."
Recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), o tratamento poliquimioterápico dura de 6 a 12 meses - ocasionalmente, pode levar 18. Todos os medicamentos são disponibilizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Em casos em que ocorram até cinco lesões de pele, chamado de paucibacilar, a associação dos medicamentos rifampicina e dapsona é utilizada por seis meses. Quando há mais de cinco lesões, utiliza-se rifampicina, dapsona e clofazimina por 12 meses. Como a doença exige notificação compulsória às secretarias estaduais, o paciente recebe acompanhamento mensal.
No Rio Grande do Sul, o índice de pessoas contaminadas pela doença era inferior ao número de doentes no Brasil. No Estado, a prevalência foi de 0,13 casos para cada 10 mil habitantes, enquanto no Brasil era de 1,42 casos. A Secretaria Estadual da Saúde (SES) tem registros de 287 casos de hanseníase em 2014. De acordo com a SES, no ano passado, a proporção de cura de casos novos foi de 70%.

A criação do Hospital Colônia Itapuã

Doença prejudica sensibilidade, o que leva a ferimentos no corpo

Doença prejudica sensibilidade, o que leva a ferimentos no corpo


JOÃO MATTOS/JC
O primeiro caso de hanseníase no Rio Grande do Sul foi registrado no município de Vacaria, em 1905. Na época, o Ministério da Saúde enviava um médico para cada estado, a fim de avaliar a propagação da doença. Em 1939, um ano depois de estabelecido o internamento compulsório para todos os contaminados, 45 dos 86 municípios gaúchos já apresentavam registros. No total, eram 450 pessoas com hanseníase.
Primeiramente, foi construído, em 1936, um estabelecimento nos fundos do Sanatório Partenon, na avenida Bento Gonçalves, na Capital, para receber os doentes. Em 1940, o governo estadual finalmente inaugurou os 1.527 hectares do Hospital Colônia Itapuã, que recebeu, ao longo dos anos, 2.474 pacientes. Hoje, 75 anos depois, a estrutura, ainda imponente, permanece de pé. Nenhum dos 14 pavilhões, cada um com nove quartos para três pacientes cada, foi derrubado. No total, são 11 casas geminadas - ou seja, 22 residências. A maioria delas está vazia. Alguns meses mais tarde, o Estado inaugurou o Amparo Santa Cruz, destinado a receber os filhos dos doentes, capaz de abrigar 300 crianças.
Atualmente, o governo estadual repassa cerca de R$ 375 mil por mês ao Hospital Colônia. Os pacientes com hanseníase recebem uma pensão do governo federal, no valor de um salário-mínimo. Discussões já trataram da possibilidade de novas internações no local. Caso isso ocorra, seriam necessárias reformas, mas o governo estadual, atualmente, não possui verba para tais investimentos.
A hanseníase, agora curável, ainda assombra - tanto que os 27 pacientes que restam no hospital querem, quando morrerem, ser enterrados no local. Hoje, os doentes dividem a o espaço da comunidade com 42 pacientes com distúrbios mentais - e mesmo eles não querem se misturar. Os antigos leprosos moram na chamada Área Suja, e os psiquiátricos, na Área Limpa. Um pórtico, com os dizeres "Nós não caminhamos sós", os separa.

Pacientes levam suas vidas à margem da sociedade

Tranquilidade do local se deve a pessoas como a enfermeira Rita Sosnoski Camello, funcionária da instituição há nove anos

Tranquilidade do local se deve a pessoas como a enfermeira Rita Sosnoski Camello, funcionária da instituição há nove anos


JOÃO MATTOS/JC
Embora melancólica, a vida dos pacientes transcorre dentro da normalidade. Essa tranquilidade se deve a pessoas como a enfermeira Rita Sosnoski Camello, funcionária do local há nove anos. Rita é o coração do hospital. Os pacientes a chamam pelo nome e por apelidos carinhosos, e a enfermeira de cabelos brancos tem liberdade para abraçá-los, entrar em suas casas e até mesmo repreendê-los quando necessário.
"Tu ainda não tomaste banho, Otávio?", indignou-se Rita, quando foi visitar a casa 25. Sentado na varanda com a esposa, Eduarda, Otávio baixou o rosto e riu, como que envergonhado. "Como vou tomar banho com esses curativos?", questionou. Eduarda rebateu na mesma hora. "Eu coloco uma sacola nos meus pés e tomo banho todos os dias!"
Eduarda e Otávio, cujos nomes foram trocados para preservar suas identidades, ambos portadores da doença, se conheceram no hospital e estão juntos há 26 anos. Ele chegou a Viamão com 15 anos e, há 60, é morador do local. Ela vai completar 29 anos de permanência e chegou logo depois de ter tido um filho, aos 28 anos. O casal se conheceu no cemitério local, onde ambos trabalhavam. "Ele me levou na conversa", conta a moradora, que sabe exatamente onde cada corpo está enterrado. Otávio trabalhou por sete anos como coveiro e cavou mais de 70 covas, que foram preenchidas por outros moradores. A maioria padece já com idade avançada. Depois de um tempo, Otávio "encheu o saco" e largou a função. "Hoje, cuido dos meus bichos e tomo meus remédios", resume.
Eduarda reclama do silêncio e da falta de mais pessoas, tanto médicos como pacientes. "Queria que trouxessem mais gente para cá", lamenta. Uma deformidade no nariz faz com que ela tenha dificuldades para se expressar, mas Eduarda ri e fala alto. Não parece estar afastada da sociedade há quase 30 anos. Otávio, mais calado, sorri, admirando a esposa. Eles formam um "casal moderno" e moram em casas separadas, uma na frente da outra. As mãos machucadas de Otávio descansam no colo dele - como a doença faz com que a sensibilidade da pele diminua, ele sofre com queimaduras, ocasionadas pelo cigarro. "Mas não deixo de fumar", conta.

Mesmo curável, doença pode causar graves sequelas

Apesar de já estarem curados e não oferecerem mais riscos de contágio, as vítimas da hanseníase sofrem com sequelas durante a vida toda. Ane Simões, dermatologista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, explica que a doença afeta ou zera a sensibilidade do corpo. "As pessoas se machucam, se queimam e, por vezes, desenvolvem infecções sérias nos ossos. Isso acarreta perda ou atrofia de membros. O desenvolvimento de cegueira, úlcera e reações a processos inflamatórios também são frequentes enquanto a doença está ativa", relata.
Hoje, é raro que o paciente precise ter algum membro amputado, uma vez que existe acompanhamento e tratamento para as sequelas. "O cenário da doença mudou. Ninguém sabe quem está contaminado, as pessoas convivem normalmente. O próprio contágio da doença é muito raro, é preciso anos de convivência com a pessoa, por isso que era muito comum dentro das famílias", explica a dermatologista. Antigamente, conta Ane, as pessoas se apavoravam com a possibilidade de contágio, pois não havia cura para o mal. "Começaram a isolar os pacientes, porque achavam que só de ficar perto, de tocar, já iam se contaminar."
Recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), o tratamento poliquimioterápico dura de 6 a 12 meses - ocasionalmente, pode levar 18. Todos os medicamentos são disponibilizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Em casos em que ocorram até cinco lesões de pele, chamado de paucibacilar, a associação dos medicamentos rifampicina e dapsona é utilizada por seis meses. Quando há mais de cinco lesões, utiliza-se rifampicina, dapsona e clofazimina por 12 meses. Como a doença exige notificação compulsória às secretarias estaduais, o paciente recebe acompanhamento mensal.
No Rio Grande do Sul, o índice de pessoas contaminadas pela doença era inferior ao número de doentes no Brasil. No Estado, a prevalência foi de 0,13 casos para cada 10 mil habitantes, enquanto no Brasil era de 1,42 casos. A Secretaria Estadual da Saúde (SES) tem registros de 287 casos de hanseníase em 2014. De acordo com a SES, no ano passado, a proporção de cura de casos novos foi de 70%.